A Ilha de Ascensão, localizada no meio do Oceano Atlântico, ficou desabitada por séculos devido à sua extrema aridez e vegetação escassa. Mas, em meados do século 19, um projeto mudou drasticamente a paisagem e o ecossistema da ilha.
Por BBC
17/07/2020 14h24 Atualizado há um dia
Postado em 18 de julho de 2020 às 12h00m
Vista do mar, a Ilha de Ascensão parece estar ardendo em chamas, uma
paisagem tão aparentemente hostil que rendeu ao local um apelido capaz
de espantar qualquer turista: "inferno do fogo apagado".
Elevando-se acima de crateras adormecidas, depósitos piroclásticos e
picos de lava, a Montanha Verde, com 859 metros de altura, e sua
vegetação frondosa chamam atenção em meio à ilha carbonizada. São também
uma prova da engenhosidade dos seres humanos e da resiliência da
natureza.
- Cientistas desvendam mistérios dos peixes 'ultra-pretos' que nadam nas escuras profundezas dos oceanos
- Como luta contra Covid-19 mostra perigos de mundo 'quente demais para humanos'
Plantada no topo de uma colina devastada há cerca de 160 anos, a
floresta que começou por um capricho passou a atrair a atenção de
cientistas de todo o mundo.
A Montanha Verde dá uma esperança de que ecossistemas criados pelo homem possam melhorar o meio ambiente.
À medida que a crise climática destrói paisagens e gera catástrofes, a
próspera selva de Ascensão reforça o argumento de que talvez possamos
regenerar uma floresta usando conceitos deste lugar remoto e muitas
vezes esquecido.
A Ilha da Ascensão surgiu do Oceano Atlântico cerca de 1 milhão de anos
atrás. Localizada no meio do caminho entre Angola e Brasil, ela recebeu
esse nome quando foi redescoberta por Afonso de Albuquerque no Dia da
Ascensão em 1503 (ela havia sido identificada pela primeira vez em
1501).
Durante muito tempo, foi ocupada apenas por aves marinhas e tartarugas
verdes que viajam milhares de quilômetros a partir do do Brasil para
procriar ali.
Os primeiros habitantes humanos chegaram em 1815, quando a Marinha Real
Britânica montou acampamento para vigiar Napoleão, que estava exilado
quase 1,3 mil quilômetros a sudeste, na ilha de Santa Helena.
Ascensão tornou-se um ponto de parada útil para os navios. Mas, durante
sua visita em 1836, Charles Darwin apontou a falha mais óbvia da ilha:
sua ausência de árvores, o que a tornou um lugar difícil de se viver.
Transformação pela chuva
Inspirado pelas teorias de seu amigo Darwin sobre transformar a
paisagem árida em um jardim, o botânico Joseph Hooker apresentou o plano
de plantar mudas de todo o mundo ali. As árvores poderiam "capturar" as
nuvens e aumentar as chuvas na ilha, tornando-a habitável.
O plano foi um sucesso. Em 1860, John Bell, horticultor da ilha,
supervisionou o plantio de cerca de 27 mil árvores e arbustos, o que
resultou no desenvolvimento de solo suficiente para o cultivo.
Foi a oportunidade de visitar essa floresta peculiar e pouco conhecida
que levou minha família a Ascensão, que agora tem cerca de 900
habitantes, entre militares americanos e britânicos e funcionários
civis.
Deixando nosso veleiro ancorado em Clarence Bay, dirigimos através de
uma paisagem lunar ofuscante, passando pelos fluxos de lava, pelas
crateras vulcânicas e pelos burros selvagens que vagam pelo deserto em
busca de comida, até começar a subir a Montanha Verde.
Ali, a luz do sol era suavizada pela névoa e depois apagada pela chuva
irregular. A estrada nos levou a uma floresta de casuarinas e acácias, e
depois para uma densa selva pontuada por bananas, gengibre, zimbro,
framboesa, café, samambaias e figos.
Depois de estacionar, partimos para a caminhada. Encontrando
ocasionalmente ovelhas selvagens, seguimos uma trilha fresca e enevoada,
cheia de teixos e pinheiros, descendentes de algumas das mudas que
Hooker aconselhou aos britânicos transportar para Ascensão a partir de
jardins botânicos de todo o mundo. A floresta parecia enganosamente
antiga.
De acordo com os princípios ecológicos tradicionais, essa mistura de
gramíneas e samambaias endêmicas com mais de 300 espécies não nativas
nunca poderia ter evoluído para um ecossistema próspero. Florestas
complexas levam milhões de anos para se desenvolver.
Mas o ecossistema artificial da Montanha Verde, onde espécies
introduzidas e plantas insulares parecem ter evoluído juntas, não se
encaixa nesse paradigma.
Contrariando o 'normal'
"O que você vê ali é algo que não despertaria o interesse de
pesquisadores tradicionais", diz Dave Wilkinson, professor de ecologia
da Universidade de Lincoln, no Reino Unido.
"Porque é algo completamente dominado por espécies não nativas, e os
ecologistas se concentram nos ambientes naturais, não em coisas que não
deveriam estar onde estão.
Isso seria considerado algo negativo."
Até recentemente, conservação significava livrar-se de espécies
invasoras e permitir que a paisagem voltasse ao modo como era antes da
intervenção humana.
Mas uma visita casual à Ilha de Ascensão em 2004 fez Wilkinson pensar nessa perspectiva "natural versus invasores".
"A Montanha Verde é um exemplo muito dramático de algo bastante comum:
em grande parte do mundo, espécies não nativas são uma parte funcional
do ecossistema."
Wilkinson desenvolveu a ideia em seu controverso artigo de 2004 para o
periódico Journal of Biogeography, A Parábola da Montanha Verde, no qual
desafia a teoria de que as espécies introduzidas em um local não
pertencem àquilo e propõe o argumento de que ecossistemas artificiais,
como a Montanha Verde, poderiam desempenhar um papel importante em nosso
futuro.
Nos anos seguintes, essa ideia ganhou força e, em 2006, o termo "novo
ecossistema" foi desenvolvido pelo renomado ecologista Richard Hobbs
para descrever lugares como a Montanha Verde, que foram
irreversivelmente alterados pela intervenção humana - e talvez não
precisem ser consertados.
Anna Bäckström, ecologista sênior do grupo de pesquisa científica ICON,
da Universidade RMIT, na Austrália, diz que os proponentes de uma nova
abordagem de ecossistema têm uma visão pragmática da conservação. "O
conceito oferece mais flexibilidade", explica ela.
Dadas as mudanças climáticas, o impacto humano e a pequena quantidade
de fundos geralmente disponíveis para conservação, Bäckström diz que, ao
aceitar as mudanças que os humanos fizeram, a restauração ecológica é
mais gerenciável.
"A paisagem não precisa voltar ao que era. Nós apenas queremos diversidade e equilíbrio."
Essa ideia de que o serviço que um ecossistema fornece - como controle
de enchentes, sequestro de carbono ou polinização - é mais importante do
que a condição primitiva de uma floresta está sendo adotada mais
amplamente à medida que os ecossistemas são jogados no caos pelos
incêndios, tempestades e doenças provocadas pela crise climática.
"Se um grupo de plantas sobreviver e algumas delas não forem nativas,
não queremos arrancá-las", diz Bäckström. "A diversidade no ecossistema é
mais importante que a origem de uma planta."
Indo ainda mais longe, Wilkinson diz que essa nova abordagem permite
que os ecologistas tenham algum controle sobre forças que podem moldar
os ecossistemas do futuro.
"Vinte anos atrás, os conservacionistas nunca cogitariam plantar
espécies não nativas, mas agora sabemos o valor de ter uma mistura de
árvores em um local, porque, se um patógeno, fogo ou animais o atacam,
nem tudo é perdido", diz ele.
Com uma abordagem inovadora do ecossistema, os conservacionistas têm a
liberdade de reconstruir uma planície que antes ficava inundada e que
secou com espécies resistentes à seca ou replantar uma paisagem
devastada pelo fogo com plantas que prosperam em uma região mais quente.
O experimento da Montanha Verde, onde as plantas de diferentes lugares
foram reunidas em um mesmo lugar e, de alguma forma, prosperaram, talvez
possa ser replicado.
Isso nos aponta que ideias polêmicas - como a da China, de plantar
bilhões de árvores para conter o avanço do deserto; ou o esforço da
Austrália para que as pessoas plantem espécies e plantas não nativas
para conter o avanço de incêndios - devem ser analisadas com mais
cuidado.
A proposta feita por Darwin e Hooker nos diz que, quando se trata de
sobrevivência, às vezes, não há problema em experimentar algo novo.
------++-====-----------------------------------------------------------------------=================---------------------------------------------------------------------------------====-++------
Nenhum comentário:
Postar um comentário