A notícia do desastre numa cidade tão importante como Lisboa espalhou-se rapidamente.
"Foi a primeira catástrofe global da mídia que atraiu a atenção de
todas as gazetas, jornais e viajantes em toda a Europa", disse
Echegoyen.
E soou mais do que um alarme.
As réplicas do terremoto agitaram o pensamento da época.
Grande procissão ao auto de fé dos condenados pela Inquisição de Lisboa, século 18 — Foto: GETTY IMAGES
A Igreja e seus seguidores procuravam culpados pela tragédia.
"Depois do terremoto que destruiu três quartos de Lisboa,
o meio mais eficaz que os sábios do país inventaram para evitar uma
ruína total foi a celebração de um soberbo auto de fé [ritual de
penitência pública], tendo a Universidade de Coimbra decidido que o
espetáculo de algumas pessoas sendo queimadas em fogo lento com toda a
solenidade é um segredo infalível para evitar tremores de terra",
escreveria Voltaire em seu polêmico conto filosófico Cândido (1759).
Enquanto a Inquisição cuidava de seus negócios, as grandes mentes da
época, muitas das quais estavam começando a ver o mundo de uma nova
maneira e que agora associamos ao Iluminismo, intensificaram suas
reflexões.
Immanuel Kant publicou três textos separados sobre o desastre,
tornando-se um dos primeiros pensadores a tentar explicar os terremotos
por causas naturais, e não sobrenaturais.
E Voltaire e Jean-Jacques Rousseau tiveram uma famosa troca de ideias.
A catástrofe havia desafiado o otimismo do Iluminismo articulado pelo
polímata alemão Gottfried Leibniz e pelo poeta inglês Alexander Pope.
Eles propuseram resolveram o problema histórico sobre o que é o mal
afirmando que a bondade de Deus havia assegurado toda a Criação e, dessa
forma, qualquer aparência do mal era apenas isso: uma aparência, o
produto da incapacidade dos humanos de compreender sua função dentro do
todo.
"A filosofia predominante era que vivíamos no melhor de todos os mundos
possíveis, que mesmo nesses desastres havia providência divina. Deus
estava elaborando algum plano e não cabia a nós questionar", explicou
Paice.
"Voltaire já criticava a interpretação teológica da natureza, e muitas
de suas obras ironizavam a ideia de que Deus de alguma forma governava
todos os assuntos humanos", disse o historiador André Canhoto Costa à
BBC Reel.
Poucas semanas depois do terremoto, Voltaire, no seu "Poema sobre o Desastre de Lisboa" desferiu o primeiro ataque naquele que viria a ser um dos maiores debates filosóficos da história.
Segundo Paice, o filósofo questionou um Deus que podia ver algo bom em um evento "tão horrível como o que aconteceu".
Imagem de ex-voto retrata o resgate de um menino de três anos e Nossa Senhora da Estrela — Foto: BBC
"Você diria vendo aquela multidão de vítimas?: 'Deus se vingou; a morte deles é o preço pelos seus crimes'.
Que crime, que falha cometeram aquelas crianças, esmagadas e ensanguentadas no ventre da mãe?
Terá Lisboa, que já não existe, mais vícios do que Londres, do que Paris, afundadas nas delícias?
Lisboa está em pedaços e dança-se em Paris"
Linhas do Poema sobre o Desastre de Lisboa de Voltaire.
Justificar sofrimento
O terremoto que destruiu Lisboa
abalou mais do que o chão para Voltaire: minou o esforço de justificar o
sofrimento com referência a algum bem maior, abrindo a possibilidade de
que algum sofrimento imerecido pudesse ser atribuído a Deus.
Rousseau rejeitou a ideia e respondeu com uma longa carta em que
argumentava, entre outras coisas, que a fonte do sofrimento do povo
lisboeta não era Deus, mas suas próprias ações: a forma como construíram
a cidade e as motivações sociais dos moradores.
A gótica Igreja do Carmo guarda as marcas do terremoto de 1755 — Foto: GETTY IMAGES
Ele argumentou que uma ocorrência terrestre, moralmente neutra, era
vivenciada como um desastre, devido à suscetibilidade autocriada que o
modo de habitar aquele lugar produzia.
"A natureza não construiu ali 20 mil casas de seis a sete andares,
(...) se os habitantes desta grande cidade vivessem mais dispersos, com
maior igualdade e modéstia, os danos causados pelo terremoto teriam
sido menores ou talvez inexistentes", escreveu Rousseau.
Ele ainda argumenta que mesmo depois do perigo revelado pelo tremor
inicial, as pessoas se recusaram a tomar as medidas necessárias.
"Quantos infelizes pereceram porque um queria resgatar suas roupas,
outros seus papéis, outros seu dinheiro?", perguntou Rousseau,
insinuando que isso refletia seus valores, mostrando que preferiam
manter sua posição social a suas vidas.
E assim, à medida que o debate avançava, a ciência emergia como uma
maneira melhor de explicar o mundo e a maneira como ele funcionava.
"A reforma protestante já tinha ocorrido, mas de alguma forma manteve
intacta a linha entre o homem e a natureza. O terremoto contribuiu para
um corte mais violento", destacou Costa.
"O terremoto de Lisboa
desencadeou toda uma série de eventos, como quando você joga uma pedra
em um lago e as ondulações ficam mais amplas e fortes e afetam tudo ao
seu redor", disse Echegoyen.
"A era do pensamento livre, de questionar o poder onipotente da Igreja e
dos reis já estava tomando forma, mas acredito que nesse dia a
humanidade começou a despertar e que nessa data realmente nasceu a era
moderna."
Uma nova ciência
"Agora o evento é considerado um marco importante nos campos científico e filosófico", disse Paice.
Retrato do Marquês de Pombal — Foto: BBC
"Foi o terremoto mais pesquisado da história. Temos um enorme banco de
relatos em primeira mão do evento e a partir deles os cientistas
começaram a analisar o que havia acontecido sem mencionar Deus."
"Pode-se dizer que 1° de novembro de 1755 é a data de nascimento da
sismologia, que hoje é estudada com base nesse acontecimento", disse
Maria João Marques, do Centro do Terremoto de Lisboa, à BBC Reel.
E é ao Marquês de Pombal que muitos atribuem o nascimento desta nova escola de Ciências.
Ele era o braço-direito do rei e foi encarregado da reconstrução da cidade de Lisboa.
"Ele enviou questionários para cada paróquia para perguntar coisas
como: por quanto tempo a terra tremeu? Quão forte? Que danos causou?
Quantas pessoas morreram? Você notou algum sinal estranho antes do
terremoto?", disse Echegoyen.
"Com sua equipe, eles coletaram e analisaram as respostas, compilando
uma espécie de livreto de todas as partidas em todos os lugares, até que
começou a surgir um padrão que se tornou a base da ciência sismológica
como a conhecemos hoje."
A reconstrução de Lisboa foi impulsionada pela ciência.
Tentando minimizar as mortes em catástrofes futuras, apoiando os
esforços de retirada de pessoas e combate a incêndios, o Marquês de
Pombal fez com que as ruas estreitas e sinuosas fossem substituídas por
avenidas largas, e que os espaços fossem amplos e ventilados.
Além disso, métodos inovadores de engenharia foram utilizados, com
estruturas flexíveis de madeira nas paredes dos prédios para que elas
"tremessem, mas não caíssem" .
Para testar esta e outras medidas contra terremotos, tropas marchavam
ao redor de prédios para simular tremores, levando ao nascimento da
engenharia sísmica.