A Covid chegou a ter uma taxa de letalidade de 1 a 2%. Atualmente, esse
número está em 0,25%, segundo alguns registros nacionais e
internacionais.
Croda explica que essa taxa de 0,25% ainda é o dobro do que ocorre na
gripe (que fica em 0,1%). Mesmo assim, houve uma diminuição de
praticamente dez vezes na mortalidade por covid que era observada há
poucos meses.
E isso, mais uma vez, tem a ver com a imunidade adquirida ao longo desse tempo.
Os vírus e nosso sistema de defesa fazem um verdadeiro cabo de guerra.
Quando surge uma doença infecciosa nova, a corda pende com mais
frequência para o patógeno, já que nossas células imunes não fazem a
menor ideia de como combater a ameaça.
Com o passar do tempo — e a disponibilidade de vacinas seguras e
efetivas — o jogo começa a virar, e o sistema imunológico "aprende" a
lidar com o inimigo. Nessa situação, mesmo que o agente infeccioso
consiga invadir o organismo, suas consequências tendem a ser menos
preocupantes.
É justamente isso que parece estar acontecendo com a Covid: dois anos e
poucos meses depois dos primeiros casos, o número de indivíduos com
algum nível de proteção é suficientemente alto para que não ocorra mais
um aumento na demanda por leitos no mesmo patamar das outras ondas, em
que o sistema de saúde chegou a entrar em colapso.
Resumindo,
pelo observado até agora, a Covid ainda não pode ser comparada com a
gripe e está longe de ser um resfriado comum, mas parece caminhar para
chegar mais próximo disso algum dia no futuro.
O que muda na prática?
Os países europeus que já classificam a Covid-19 como uma endemia em
seus territórios acabaram (ou acabarão em breve) com a maioria das
restrições que marcaram os últimos 24 meses.
De forma geral, não haverá mais necessidade de uso de máscaras em
locais fechados, não será preciso mostrar o comprovante de vacinação e
as aglomerações estarão completamente liberadas.
Num discurso recente no Parlamento do Reino Unido,
o primeiro-ministro Boris Johnson disse que, "conforme a Covid se
tornar endêmica, nós precisaremos substituir as requisições da lei pela
orientação, de modo que as pessoas infectadas com o vírus sejam
cuidadosas umas com as outras".
Maciel entende que alguns cuidados devem permanecer mesmo assim, ainda que a situação fique menos grave.
"O vírus vai continuar circulando. Mesmo que as medidas não sejam mais
obrigatórias, é importante que todos tomem alguns cuidados quando
necessário", orienta.
A epidemiologista avalia que é preciso empoderar e ensinar as pessoas,
para que elas avaliem o risco de cada situação e tomem as medidas para
proteger a si e a todos ao redor.
Um
sujeito com sintomas de gripe ou Covid, por exemplo, deve trabalhar de
casa, se possível, para não colocar em risco os demais colegas. E, caso
tenha que sair, ele pode usar máscara para, assim, evitar a transmissão
do vírus para os contatos próximos.
"É a mesma coisa que acontece com a infecção pelo HIV. Ter uma relação
sexual sem preservativo te coloca numa situação de risco, mesmo que essa
doença seja considerada hoje uma endemia", compara.
Que fique claro: o alívio nas políticas restritivas não significa que
elas foram inúteis ou não deveriam ter sido adotadas no passado. É
consenso entre os especialistas que todas essas medidas salvaram muitas
vidas num momento em que não existiam outros meios para barrar a
infecção e suas complicações.
Hoje em dia, possuímos ferramentas testadas e aprovadas — vacinas e
remédios — para lidar com a Covid e torná-la menos ameaçadora para a
grande maioria da população.
E, claro, caso surja uma nova variante agressiva e com capacidade de
escapar da imunidade, será preciso instaurar novamente muitos desses
cuidados preventivos que começam a ser abandonados em certas partes do
mundo.
Além das questões relacionadas à prevenção, outra mudança significativa
da endemia envolve a vigilância: a forma como os casos são detectados e
notificados é bem diferente.
Durante os últimos dois anos, muitos países fizeram uma busca ativa de
infectados, mesmo aqueles que nem apresentavam sintomas típicos da
Covid. Foram montadas tendas de testagem em diversos locais e kits de
diagnóstico eram distribuídos gratuitamente (ou vendidos por um preço
baixo) para os cidadãos — no Brasil, foram poucas as cidades ou os
estados que lançaram uma política nesses moldes.
Aqueles indivíduos que testavam positivo eram então monitorados e
orientados a ficar em quarentena. Na sequência, as pessoas com quem eles
tiveram contato próximo nos dias anteriores eram comunicadas a também
buscar os exames.
Durante uma pandemia ou uma epidemia, essa estratégia permite cortar as
cadeias de transmissão do vírus na comunidade e evita que a situação
cresça e gere uma bola de neve, que desemboca em um aumento massivo de
hospitalizações e mortes.
Com a endemia, todo esse amplo programa de testagem, isolamento e rastreamento de contatos deixa de fazer sentido.
"Passa-se então para um modelo de vigilância sentinela, em que não é
necessário testar todo mundo que apresenta sintomas de infecção
respiratória", explica Croda.
"Um sistema que concentre os testes nos hospitais ou nos ambulatórios
de atenção primária é custo-efetivo e ajuda a identificar padrões no
número de casos."
"Se a vigilância notar um novo crescimento em determinada região, é
possível intervir cedo, antecipando campanhas de vacinação ou
disponibilizando de mais testes para aquele local", completa o
especialista.
Ainda nesse contexto endêmico, a ciência ainda não sabe ao certo como será o futuro da vacinação contra a Covid. Será que todos deverão tomar uma quarta dose? Ou haverá a necessidade de reforços anuais, a exemplo do que ocorre com a gripe?
"É possível que precisemos de vacinas adaptadas de acordo com o
surgimento de novas variantes, para proteger principalmente os grupos
mais vulneráveis, como idosos, pacientes imunossuprimidos e crianças",
antevê Croda.
É cedo para decretar uma endemia?
As decisões tomadas por alguns países europeus geraram algumas controvérsias no meio acadêmico.
Num artigo publicado na revista especializada Nature, o pesquisador Aris Katzourakis, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, criticou o que ele considera um "otimismo preguiçoso".
"Como
virologista evolutivo, fico frustrado quando gestores públicos invocam a
palavra 'endemia' como uma desculpa para fazer pouco, ou não fazer
nada. Existem mais coisas que podem ser feitas do que aprender a
conviver com rotavírus, hepatite C ou sarampo endêmicos", escreveu.
Katzourakis também diz que é um erro pensar que a evolução dos vírus sempre os tornam mais "bonzinhos".
"Lembre-se que as variantes alfa e delta são mais virulentas que a
versão original detectada em Wuhan, na China. E a segunda onda da
pandemia de gripe espanhola em 1918 foi muito mais mortal que a
primeira", argumenta.
"Pensar que a endemia é leve e inevitável não é apenas errado, mas
perigoso: deixa a humanidade à mercê de muitos anos da doença, incluindo
ondas imprevisíveis e novos surtos. É mais produtivo considerar o quão
ruim as coisas podem ficar se continuarmos a dar ao vírus oportunidades
de nos enganar. E daí então podemos fazer mais para garantir que isso
não aconteça", finaliza.
Para Croda, só o tempo dirá se a decisão dos países europeus foi certa ou errada.
"Isso depende muito de fatores que não controlamos. Nesse meio tempo,
pode surgir uma nova variante extremamente contagiosa, com escape
imunológico e maior risco de hospitalização e óbito", especula.
"É justamente para evitar que isso aconteça que precisamos ofertar
vacinas para todos, especialmente para aqueles que ainda não tomaram
nenhuma dose. Essa deveria ser a prioridade número um do mundo inteiro",
acrescenta.
Maciel concorda. "Quando a transmissão está muito alta, tudo pode
acontecer, inclusive o surgimento de novas variantes.", alerta.
"E o Brasil, além de seguir com a vacinação, precisa ampliar o acesso
aos tratamentos contra a Covid, como os anticorpos monoclonais e os
antivirais, que já são usados em outros países", complementa.
Onde o Brasil se encaixa nesse debate?
Por ora, ainda é muito cedo para falar de endemia no nosso país, explicam os especialistas. Estamos na crista da onda da ômicron, com recordes no número de casos e um aumento expressivo nas hospitalizações e nas mortes por Covid durante os últimos dias.
O
Instituto de Métricas em Saúde da Universidade de Washington, nos EUA,
projeta que o Brasil deve atingir o pico de óbitos relacionados a essa
nova variante no meio de fevereiro. A partir daí, os números devem cair
novamente e se estabilizar durante o mês de março.
Portanto, estamos alguns passos atrás do que é observado em outras partes do mundo, onde os números já estão se estabilizando.
Para garantir uma situação mais tranquila por aqui, também é preciso ampliar a cobertura vacinal com a terceira dose. No momento, 23% dos brasileiros tomaram o reforço, número muito aquém do ideal. Vários estudos já mostraram que essa aplicação do imunizante é essencial para proteger contra a ômicron e seus efeitos mais graves no organismo.
Croda entende que, com o passar do tempo, vários países devem seguir os
passos dos europeus e começarão a encarar a Covid sob uma nova ótica.
"E a América do Sul pode até ter uma vantagem nisso, já que é o continente com a maior cobertura vacinal contra a Covid do mundo", compara.
"Assim que a onda da ômicron passar, podemos ficar numa condição muito melhor para diminuir as restrições", diz.
Para entender como os gestores públicos enxergam essa discussão e se já
há algum planejamento para que o país entre nessa fase de transição, a
BBC News Brasil entrou em contato com o Conselho Nacional de Secretários
da Saúde (Conass) e com o Ministério da Saúde.
Por meio de uma nota de esclarecimentos, o Conass declarou que "o
avanço da vacinação no Brasil, que hoje já alcança mais de 75% do
público-alvo vacinado com as duas doses, é o primeiro passo para que o
país caminhe para superar a pandemia da covid-19, porém, a introdução da
variante ômicron mostrou a complexidade do enfrentamento do vírus e sua
alta capacidade de mutações."
"A rápida transmissão desta variante criou uma nova pressão na rede
assistencial e o aumento de óbitos. Não é possível considerar de caráter
endêmico uma doença que traz esse peso na assistência e que tenha essa
alta morbimortalidade. Superar a pandemia não quer dizer que não teremos
mais casos e óbitos pela covid-19, mas não temos parâmetros ainda para
saber o quanto de casos e óbitos serão considerados esperados e, dessa
forma, tratados como endêmicos", continua o texto.
"As atenções e os esforços atuais devem estar voltados para garantir a
ampliação e manutenção dos leitos clínicos e UTI covid, além da
intensificação das campanhas de incentivo para que todos os brasileiros
completem o esquema vacinal, incluindo a dose de reforço. Ainda não é o
momento para baixar a guarda e decretar o controle da pandemia no
Brasil", conclui o Conass.
O Ministério da Saúde não enviou resposta até a publicação desta reportagem.