Tudo começou em 2016, quando uma foto tirada pelo americano Johnny 
Miller na Cidade do Cabo, na África do Sul, viralizou nas redes sociais e
 ganhou destaque na imprensa. 
    
 A imagem, produzida com o uso de um drone, mostrava o impressionante 
contraste entre a vizinhança rica e branca de Lake Michelle, formada por
 mansões milionárias à beira de um lago, e a comunidade pobre e negra de
 Masiphumelele, onde 38 mil pessoas vivem em barracos e se estima que 
até 35% da população esteja infectada com HIV ou tuberculose. 
    
 A partir da atenção gerada por essa fotografia, Miller criou o projeto 
"Unequal Scenes" (Cenas Desiguais) e já viajou para oito países 
retratando, a partir do alto, com o uso de drones ou helicópteros, como a
 desigualdade de renda se expressa na arquitetura e na organização 
urbana das cidades. Parte do seu trabalho pode ser conferida no 
Instagram.
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Cidade do Cabo — Foto: JOHNNY MILLER / UNEQUAL SCENES
     
 Desde o fim de outubro, Miller está no Brasil, sem data ou endereço 
para voltar, depois de se desfazer de seu apartamento na África do Sul, 
onde viveu nos últimos oito anos. Por aqui, ele já fotografou imagens 
chocantes de desigualdade no Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte e
 planeja ainda levar seu projeto a Salvador.
Brasil se desviou do caminho de redução da desigualdade
    "O Brasil, infelizmente, não está no caminho certo", lamenta Miller.
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Vidigal — Foto: JOHNNY MILLER / UNEQUAL SCENES
     "De
 maneira geral, as soluções para acabar com a desigualdade envolvem 
taxar mais os ricos e usar esse dinheiro para redistribuir aos mais 
pobres. Focar em medidas como bolsas sociais, transporte público e 
sistemas de saúde. Nos últimos quatro anos, ou dois anos, o governo do 
seu país parece estar se desviando desse caminho."
    
 Aos 39 anos, o fotógrafo e ativista fala com experiência. Ele já passou
 por África do Sul, Namíbia, Tanzânia, Quênia, Índia, México, Estados 
Unidos e agora pelo Brasil, tirando fotos para seu projeto, tendo 
recebido diversos prêmios e bolsas de financiamento. 
    
 Também trabalha com a ONU Habitat (Programa das Nações Unidas para os 
Assentamentos Humanos, agência especializada da ONU dedicada à promoção 
de cidades social e ambientalmente sustentáveis), em programa voltado 
para reduzir as desigualdades espaciais e a pobreza através de 
iniciativas de regeneração urbana.
Sociedades atuais são insustentáveis
   
 Para Miller, a escolha da desigualdade como tema central de seu projeto
 parte de uma avaliação de que a forma como as sociedades atuais são 
organizadas não é sustentável. 
    
 "Eu acredito, e muitas pessoas acreditam o mesmo, que da forma como 
nossas sociedades são organizadas, o status quo não é sustentável. Não é
 saudável, não é tão próspero quanto poderia ser, não é tão seguro 
quanto poderia ser."
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Mumbai — Foto: JOHNNY MILLER / UNEQUAL SCENES
     "As
 pessoas me perguntam: 'Então você acha que todo mundo deve ser 
totalmente igual?' Não, eu não acredito nisso. Não sou algum tipo de 
comunista soviético. Mas o que eu acredito é que a proporção entre 
riqueza e pobreza atualmente está totalmente desequilibrada e além do 
razoável."
    
 "Num país como o Brasil, algumas pessoas muito ricas detêm mais de 50% 
da riqueza. O mesmo acontece na África do Sul e nos EUA e isso está 
piorando. Acredito que isso é um problema e que a mudança climática e a 
desigualdade serão os maiores desafios do século 21."
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Cidade do México — Foto: JOHNNY MILLER / UNEQUAL SCENES
Imagens têm o propósito de gerar discussão
   
 Segundo o fotógrafo, seu objetivo ao retratar as cenas de desigualdade 
não é apontar soluções para o problema, mas fazer com ele seja cada vez 
mais um tema de discussão. 
    
 "Prefiro que você não me pergunte qual é a minha solução para a 
desigualdade, porque, honestamente, há pessoas muito mais inteligentes 
do que eu trabalhando para resolver a questão e a resposta não será 
muito sexy. Será uma combinação de reforma tributária e redistribuição 
de renda através de instrumentos financeiros e patrimoniais." 
    "O
 que eu posso fazer é comunicar o tema de uma maneira que faça as 
pessoas entenderem que se trata de um problema. O que estou tentando 
fazer com esse projeto é provocar uma discussão sobre desigualdade, mas 
também sobre como a arquitetura é usada para separar as pessoas."
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Paraisópolis — Foto: JOHNNY MILLER / UNEQUAL SCENES
       Fotografias de desigualdade podem ser belas
    
 Assim, Miller entende que seu trabalho é mais do que fazer imagens 
bonitas, mas ele não tem medo de admitir que suas fotografias, apesar de
 retratarem realidades terríveis, também são belas. 
    
 "Eu me sinto confortável dizendo que é importante para mim que minhas 
imagens sejam bonitas. Acredito que parte do motivo por que minhas 
imagens são tão populares é porque elas são belas. Muitas pessoas não 
admitem isso, o que é interessante. Porque elas acham que não é ok dizer
 que uma imagem de pobreza ou de desigualdade pode ser bonita." 
 "Mas
 as pessoas gostam de olhar para coisas bonitas. Se você está nas mídias
 sociais e vê algo que é colorido, simétrico e belo, mas que também tem 
uma história política, isso vai chegar mais longe do que uma foto que 
não seja colorida, bem equilibrada e bonita."
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Rocinha — Foto: JOHNNY MILLER / UNEQUAL SCENES
Uso de drones é uma escolha política
 
 Miller também é diretor de uma organização não-governamental na Cidade 
do Cabo chamada African Drone. O fotógrafo é um entusiasta da tecnologia
 e acredita que o seu uso é uma escolha política, além de estética. 
    "Acredito
 que drones são uma tecnologia muito democrática. Eles permitem ver a 
partir de cima, de uma forma que não seria possível cerca de quatro anos
 atrás sem tecnologias muito caras."
    
 Para Miller, o drone é uma tecnologia "empoderadora", aliada da luta 
pela desconcentração da posse de terras, do jornalismo e da ajuda 
humanitária. 
    
 "Você pode mapear com drones, então pessoas que não detêm a posse de 
sua terra ou o título de sua residência podem provar com o uso de GPS 
que aquela área é delas, que aquela casa é delas." 
    
 "Para jornalistas e outros comunicadores, é muito importante poder voar
 sobre muros e ver coisas que pessoas querem manter em segredo", afirma.
 "Também há todo um terreno em expansão de entregas. Está reduzindo o 
custo de entregar suprimentos médicos e infraestruturas críticas na 
África."
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Dona Marta — Foto: JOHNNY MILLER / UNEQUAL SCENES
Vinda ao Brasil
   
 O fotógrafo conta que queria vir ao Brasil há muitos anos, em parte 
pelo desejo de conhecer o brasileiro Tuca Vieira, autor do mais icônico 
retrato da desigualdade nacional, que captou, em 2004, o contraste entre
 a favela de Paraisópolis e os prédios de luxo do bairro rico do 
Morumbi, em São Paulo. 
    
 Após passar sete meses de 2020 "preso" nos EUA, ao ir visitar sua avó e
 ser impedido de voltar à África do Sul pela pandemia, Miller resolveu 
realizar o desejo antigo. 
    
 Em São Paulo, conheceu Vieira e voou com ele de helicóptero para 
refazer a histórica foto 16 anos depois. "Ainda é igual, completamente. 
Nada mudou", afirma. 
     Mas foi no Rio de Janeiro que Miller viu as imagens de desigualdade que mais o impressionaram. 
    
 "Uma das coisas interessantes sobre o Brasil, e especificamente 
Copacabana — estou sentado aqui ao lado de uma janela, através da qual 
posso ver uma favela - é que aqui é muito mais misturado do que na 
África do Sul, por exemplo." 
    
 "A África do Sul tem uma sociedade muito dividida. Há uma classe 
trabalhadora, toda negra e muito pobre. E uma elite, que é muito branca e
 muito rica. Eles não se misturam. E é terrível. Sinto que a Índia e o 
Brasil são mais parecidos. No sentido que as pessoas tendem a interagir 
mais."
   "Favelas são um fenômeno único. Especificamente no Rio de Janeiro. Não acho que nenhum outro lugar do mundo se parece com isso."
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