A Nasa está em uma missão para mudar isso. A
agência espacial norte-americana está explorando as profundezas
oceânicas em busca de indicações de qual poderá ser a aparência dos
oceanos em outros planetas, a fim de expandir os limites da
ciência e da tecnologia em um dos ambientes mais extremos da Terra. É
uma missão cheia de maravilhas, perigos e um risco de implosão que não
pode ser menosprezado.
A esperança é que as descobertas subaquáticas da missão ajudem a desvendar alguns dos mistérios do espaço sideral, além de testar parte do equipamento e os experimentos necessários para missões em outros pontos do Sistema Solar.
As profundezas dos oceanos da Terra são surpreendentemente similares a algumas das condições que a Nasa espera encontrar em outros mundos do nosso Sistema Solar. Elas poderão até fornecer indicações sobre os lugares onde os cientistas deverão procurar vida alienígena.
As partes mais profundas dos oceanos da Terra são conhecidas como a zona hadal. Seu nome vem de Hades, o deus grego do submundo, e é um lugar hostil que faz jus à denominação. Ela consiste de fossas e canais profundos e se estende até 11 km abaixo da superfície dos oceanos do planeta.
Ao todo, ela representa uma área de leito marítimo equivalente ao
tamanho da Austrália — e poucos veículos conseguem sobreviver a um
mergulho nesse abismo escuro.
É na zona hadal que os cientistas da Nasa, em parceria com o Instituto Oceanográfico Woods Hole (WHOI, na sigla em inglês) de Massachusetts, nos Estados Unidos, estão tentando explorar e sondar os limites da vida na Terra.
Até a linguagem empregada pelos cientistas para suas missões naquela região utiliza termos adotados pela exploração espacial. Nos
últimos anos, biólogos marinhos enviaram diversos "módulos de
aterrissagem" equipados com sensores e câmeras para "aterrissagens
acidentadas" sobre o leito da zona hadal, onde eles fazem medições.
Mas os engenheiros do Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa no sul da Califórnia, nos Estados Unidos, estão construindo um novo veículo subaquático autônomo chamado Orpheus
— o nome em inglês do herói da Grécia antiga que viajou para o submundo
e voltou — para mapear as profundezas mais inacessíveis.
Utilizando tecnologia de navegação visual similar à da sonda Perseverance da Nasa em Marte, Orpheus
possui câmeras altamente sensíveis para identificar formações rochosas,
conchas e outras características do leito oceânico e elaborar mapas
tridimensionais pontilhados com marcas do terreno — ou melhor,
marcas do leito oceânico. Isso permite que o robô encontre seu caminho e
reconheça lugares onde já esteve, mas deverá também ajudar a lançar
novas luzes sobre a biodiversidade daquele ambiente hostil.
"Orpheus é um veículo que serve de portal", afirma Tim Shank, biólogo
das profundezas marinhas que está liderando o programa de exploração
hadal do WHOI. "Se ele funcionar, não haverá lugar no oceano aonde não possamos ir."
Não é a primeira vez que Shank tenta atingir as profundezas escuras da zona hadal. Em
2014, o veículo predecessor de Orpheus — Nereus — foi enviado para a
Fossa de Kermadec, a nordeste da Nova Zelândia. Mas o veículo
subaquático implodiu a cerca de 10 mil metros de profundidade, muito provavelmente devido à imensa pressão.
"Depois de 12 horas, nós o vimos emergir em pequenos pedaços",
relembra Shank, acrescentando que a perda de Nereus fez com que eles
repensassem a forma de explorar as profundezas dos mares. Com
o tamanho aproximado de um quadriciclo e pesando cerca de 250 kg,
Orpheus foi projetado para ser muito mais leve, menor e mais barato que
os veículos subaquáticos anteriores. E ele também deve ser mais
ágil e capaz de entrar em fossas e respiradouros no leito oceânico que
nunca haviam sido explorados antes.
Europa na Terra
Por muito tempo, os biólogos marinhos acreditaram que a vida na zona hadal era impossível — até que, quando os veículos submergíveis começaram a aventurar-se na região, na primeira metade do século 20, ficou evidente que a vida poderia suportar aquelas condições.
Mas ainda se acreditava na época que todos os organismos vivos fossem
sustentados por uma cadeia alimentar abastecida, em última análise, pela
fotossíntese. Plantas, algas e algumas bactérias marinhas nas águas da
superfície convertem a energia do Sol em açúcares que são armazenados na
sua matéria orgânica. Essa matéria é comida pelos herbívoros que, por
sua vez, são comidos por animais carnívoros.
Os cientistas estavam convencidos de que os organismos do leito oceânico sobreviviam com matéria orgânica morta — carcaças de animais, fezes e a queda constante de outros detritos orgânicos, ou "neve marinha", flutuando de cima para baixo. Mas
se acreditava que não haveria alimento suficiente para sustentar muitas
criaturas marinhas e que as áreas mais profundas fossem ainda escuras e
frias demais para a vida.
Essa
percepção das profundezas oceânicas se alteraria em 1977, quando uma
equipe de pesquisa norte-americana lançou um veículo de operação remota a
2.440 metros de profundidade no Oceano Pacífico. O veículo foi
enviado para fotografar os respiradouros hidrotérmicos, onde o calor da
atividade vulcânica emerge do leito oceânico.
Para sua surpresa, os
cientistas descobriram ecossistemas vibrantes em volta dos
respiradouros, repletos de organismos marinhos, como o peixe-caracol
transparente e anfípodes — crustáceos que se parecem com pulgas — que
nunca haviam sido vistos antes.
"Com essa descoberta, nós [encontramos] uma forma inteiramente nova de vida na Terra", afirma Shank. "Esses animais não precisam da luz solar direta... eles vivem das substâncias que saem do leito oceânico."
Os cientistas estavam perplexos: como essas espécies conseguem
sobreviver à pressão esmagadora da zona hadal? "A pressão [ali] é de
cerca de 1 mil atmosferas", explica Shank. "Ela é tão forte que as
células individuais de um animal seriam arrancadas."
Desde aquela primeira observação em 1977, os cientistas descobriram que
os organismos que vivem nas profundezas adaptaram-se em nível celular
para sobreviver naquela região, segundo Shank. As criaturas da zona
hadal, como os crustáceos anfípodes e o peixe-caracol, possuem enzimas
chamadas piezólitos (palavra derivada de "piezin", ou pressão em grego),
que impedem suas proteínas e membranas celulares de serem esmagadas sob
pressão extremamente alta.
Os piezólitos combatem a pressão aumentando o espaço ocupado pelas
proteínas no interior das células do organismo para compensar o peso da
água à sua volta. "É como colocar estacas em uma tenda", compara Shank.
Descobrir organismos que podem não apenas sobreviver, mas proliferar-se nesse ambiente repressivo levanta questões importantes
para os biólogos que examinam além dos domínios do nosso planeta - como
se eles poderão também ser encontrados nos oceanos de outros mundos.
Abaixo
da superfície de gelo de uma das maiores luas de Júpiter — Europa —
encontra-se um oceano de água salgada. Acredita-se que ele tenha 60 a
150 mil metros de profundidade e contenha duas vezes mais água que todos
os oceanos da Terra juntos. A luz do Sol não penetra na espessa
camada de gelo de Europa, repleta de fraturas e rachaduras. Abaixo da
crosta de gelo, a pressão é comparável à da zona hadal da Terra.
"Aqui temos Europa na Terra", afirma Shank. "Não vejo como podemos explorar Europa sem antes fazer o mesmo na Terra."
Um
robô capaz de explorar a zona hadal da Terra poderá fazer o mesmo em
uma lua congelada a 628 milhões de quilômetros de distância.
"O leito oceânico é uma grande plataforma de teste para podermos
desenvolver a tecnologia necessária para uma missão bem sucedida até o
oceano desses mundos", afirma Russell Smith, engenheiro do Laboratório
de Propulsão de Jatos da Nasa, que é parte da equipe responsável pela construção de Orpheus.
Mas um robô em operação no espaço sideral ou nas profundezas do oceano precisa ser totalmente autônomo. "O
robô precisa ser capaz de tomar decisões", afirma Smith, acrescentando
que o objetivo é que Orpheus possa detectar e classificar DNA ambiental e
substâncias da água, além de trazer amostras do leito oceânico.
Construir
um robô para a zona hadal é um desafio incrível, segundo ele. Orpheus
precisa suportar pressões intensas e temperaturas extremas. A
água na zona hadal está pouco acima do ponto de congelamento, mas, nos
respiradouros hidrotérmicos, as temperaturas podem atingir 370°C.
"Desenvolver um veículo que possa sobreviver é muito difícil", afirma
Smith. "Você precisa de paredes muito espessas para evitar que o
circuito eletrônico seja molhado ou esmagado."
Orpheus é parcialmente construído com espuma sintática, um material
flutuante composto de esferas de vidro microscópicas embutidas em resina
epóxi. A espuma usada em Orpheus
vem de resíduos do material produzido para o veículo subaquático Deepsea
Challenger, do diretor cinematográfico James Cameron, que desceu até o
fundo da Fossa das Marianas, no oeste do Oceano Pacífico, em 2012.
Como
é totalmente escuro nas profundezas do oceano, Orpheus é equipado com
uma enorme lanterna. Se a luz ficar ligada todo o tempo, ela esgotará
rapidamente a bateria do robô, que ficaria encalhado nas esmagadoras
profundezas. Para economizar energia, Orpheus entrará em modo de
baixo consumo quando não estiver recolhendo amostras ou imagens, segundo
explica Smith.
Missão para a Lua
Em 2017, a Nasa
lançou o projeto chamado Exploração Analógica Subaquática Sistemática
de Ciências Biogeoquímicas (Subsea, na sigla em inglês), para reunir os
campos da exploração espacial e oceânica. Até o momento, foram
conduzidas duas missões com veículos operados com controle remoto para
respiradouros hidrotérmicos no Oceano Pacífico.
Acredita-se que a atividade vulcânica em volta do monte submarino
Lō'ihi, a cerca de 30 km do litoral do Havaí, e do Dorsal de Gorda, a
120 km da divisa entre os Estados da Califórnia e de Oregon no litoral
norte-americano, seja similar à encontrada nos mundos oceânicos de
Europa e da lua de Saturno Encélado.
"Todo
o projeto foi baseado em descobrir áreas nas profundezas dos nossos
oceanos que realmente tivessem natureza análoga ao que prevemos
encontrar em lugares como Encélado", afirma Darlene Lim, geobióloga da Nasa que lidera o programa Subsea e prepara os astronautas para a exploração da Lua e do espaço sideral.
Os
cientistas usaram as missões Subsea para conseguir compreender melhor a
química e a geologia desses respiradouros, bem como a vida em torno
deles.
"Esses respiradouros são muito inócuos", afirma Lim. "Você precisa
examinar com muita atenção para perceber alterações da temperatura da
água que sai da terra e interage com a água do mar, muito fria. Até
mesmo essa ação isolada é muito importante para podermos prever como
explorar alguns desses mundos oceânicos do nosso sistema solar."
Poderão ainda passar décadas até podermos enviar robôs para Europa e Encélado, mas os cientistas da Nasa já estão aplicando nas missões espaciais o que aprenderam com a exploração das profundezas do oceano.
Em 2023, a Nasa enviará uma sonda robótica para procurar água congelada no polo sul da nossa Lua. Conhecida
como Sonda de Exploração Polar para Investigar Substâncias Voláteis
(Viper, na sigla em inglês), a missão estudará o gelo perto da cratera
lunar Nobile, na esperança de que ele possa ser minerado para uso como
combustível para foguetes ou água potável. Embora não opere embaixo
d'água, uma sonda caminhando na Lua enfrentará muitos desafios técnicos
idênticos.
"Estamos
reunindo todo o aprendizado do Subsea e aplicando no Viper", afirma
Lim, que também é a cientista vice-líder do projeto Viper.
O objetivo do programa Subsea foi garantir que os cientistas atinjam
seus objetivos de pesquisa em condições extremamente desafiadoras, do
ponto de vista da tecnologia e de comunicações.
Do
ponto de vista operacional, a exploração oceânica e a espacial também
têm muitos pontos em comum. Nesses dois campos, robôs são enviados para
explorar ambientes traiçoeiros que os seres humanos não conseguem
alcançar, apoiados por equipes remotas de cientistas. Mas poderá também ser conveniente preparar astronautas para controlar equipamento robótico de uma base lunar no futuro.
Menos de 10 cientistas foram para o mar com a missão Subsea. Eles
trabalharam com um grupo maior de colegas em terra. Para a missão Viper,
uma equipe irá operar a sonda na Terra quase em tempo real e precisará
analisar dados e tomar decisões com muita rapidez.
A comunicação eficiente é fundamental durante essas missões, afirma Zara Mirmalek, cientista social da Nasa que ajuda os cientistas a se prepararem para exploração em ambientes extremos. Ela trabalhou nos programas Subsea e Viper.
Para explorar as profundezas oceânicas, os cientistas precisam tomar
decisões todo o tempo, dependendo das condições marítimas, do tempo e da
salinidade. "Você sabe que terá menos tempo que o planejado", explica
Mirmalek. "É muito mais difícil trabalhar nas profundezas oceânicas porque as condições são um grande desafio para a tecnologia."
Ela ressalta que, nas missões espaciais, as comunicações são
extremamente limitadas. Como preparação para as condições do espaço
sideral, Mirmalek restringiu os cientistas da missão Subsea para que se
comunicassem entre si apenas uma vez por dia. "Não houve falhas — eles
atingiram todos os seus objetivos de pesquisa", segundo ela.
Já Darlene Lim afirma que "tudo aquilo que aprendemos trabalhando em
conjunto com a comunidade oceanográfica foi muito valioso, realmente
inestimável, para ajudar-nos a confiar nos processos que estamos
adotando para projetar nossas operações científicas para o Viper".
Mas,
da mesma forma que nas missões para fora do planeta, a exploração do
fundo dos oceanos também está permitindo à humanidade olhar para a Terra
de outra maneira.
A Nasa afirma que suas explorações oceanográficas geraram "milhares" de descobertas científicas,
mas elas também estão fornecendo outras informações que poderão ser
vitais se quisermos continuar vivendo em um mundo com oceanos saudáveis.
Precisamos compreender nossos
ambientes oceânicos se quisermos salvá-los, segundo Laura Lorenzoni,
cientista do programa de biogeoquímica e biologia dos oceanos da direção
de missões científicas da Nasa.
"Isso é fundamental para a vida na Terra e as medições constantes que a Nasa realizou — e continua a realizar — são fundamentais para garantir o uso sustentável dos nossos recursos oceânicos", afirma ela.
Ou seja, a cada passo que damos rumo à exploração de outros mundos,
aprendemos também um pouco mais sobre algumas das partes mais
inexploradas do nosso próprio planeta azul.