Localidade na Califórnia (EUA) registrou temperatura mais alta já aferida de forma confiável na Terra: 54,4 graus Celsius. Saiba como é a vida por lá - e por que o clima no local não é necessariamente o mais perigoso.
Por BBC
23/08/2020 11h14 Atualizado há um dia
Postado em 25 de agosto de 2020 às 10h00m
"Já perdemos a paciência com o calor que faz", diz Brandi Stewart, que
trabalha no Parque Nacional do Vale da Morte, na Califórnia (Estados
Unidos). "Quando você sai de casa é como ser atingido no rosto pelo ar
vindo de secadores de cabelo."
O Parque Nacional do Vale da Morte é uma vasta área deserta cheia de
desfiladeiros e dunas de areia que se estendem pela fronteira com o
Estado vizinho de Nevada.
No domingo (16), o parque registrou a temperatura de 54,4°C — que pode
ser a mais alta já aferida de forma confiável na Terra. A Organização
Meteorológica Mundial (OMM) afirma que ainda está verificando o
registro.
No entanto, na foto de Brandi, a placa que mostra a temperatura parece ter superaquecido.
Brandi é uma das poucas pessoas que se consideram em casa no local. O
vale é conhecido como o "lugar mais quente do mundo" — nos EUA, ao menos
(embora o parque possa ter batido o recorde de temperatura mais alta já
registrada, o lugar com temperatura média mais alta ao longo do ano é
Dallol, na Etiópia, no leste da África).
Brandi Stewart vive intermitentemente no Vale da Morte há cinco anos, trabalhando no departamento de comunicação do parque.
"É tão quente que demorei um pouco para me acostumar com o fato de que
você não consegue sentir o suor na pele porque ele evapora muito
rápido", diz ela à BBC. "Você pode sentir nas roupas, mas não sente o
suor na pele. Seca muito rápido."
Brandi diz que passa muito tempo no verão dentro de casa, onde tem ar
condicionado, mas algumas pessoas optam por ir às montanhas, onde as
temperaturas são um pouco mais baixas.
"Assim que as pessoas se acostumarem com o calor, começam a
normalizá-lo, e qualquer coisa abaixo de 26°C parece frio", brinca ela.
Apesar das altas temperaturas, o Vale da Morte não é um dos lugares mais perigosos à saúde humana.
Isso porque é a combinação de temperatura e umidade, entre outros
fatores, que pode tornar clima de uma região mais seguro ou perigoso
para a saúde.
O Vale da Morte é seco, com índices de umidade do ar que giram em torno
de 7%. A baixa umidade permite que o corpo lide melhor com a alta
temperatura e consiga regular sua própria temperatura com mais
facilidade.
Em locais muito quentes e muito úmidos, o suor não evapora com tanta
facilidade — a evaporação do suor é uma das principais formas de auto
regulação da temperatura do corpo no calor.
Ondas de calor que surgem em momentos onde a umidade do ar está alta
também podem ser muito perigosas. Com o calor e a umidade, o corpo pode
superaquecer, e a velocidade do vento também pode intensificar os
perigos de uma onda de calor.
Ar-condicionado
As pessoas da cidade no Vale da Morte têm ar-condicionado, o que mantém
as casas frescas enquanto não houver falta de energia — o que pode
acontecer quando todos estão tentando manter suas casas em uma
temperatura confortável.
A maioria das pessoas que trabalha e vive no parque nacional mora na
cidade de Furnace Creek, onde o recente recorde de temperatura foi
registrado. A cidade está situada em um vale longo e estreito, cerca de
85 metros abaixo do nível do mar. É cercada por cadeias de montanhas
altas e íngremes.
Jason Heser, nascido no Estado americano de Minnesota, mora em Furnace
Creek e trabalha no campo de golfe. É o campo de golfe mais baixo do
mundo, a 85 metros abaixo do nível do mar.
"Já estive no Iraque duas vezes. Se posso aguentar o Iraque, posso aguentar o Vale da Morte", diz o veterano de guerra.
Ele começa a trabalhar no campo de golfe pouco antes das 5h e vai até às 13h.
"Assim que começa a ficar mais quente, como agora, começamos a
trabalhar às 4h, quando a temperatura ainda está abaixo de 40°", diz.
A água usada para manter o campo em funcionamento vem de uma fonte
natural subterrânea. Heser faz parte de uma equipe que ajuda a manter a
área em boas condições.
"Cortamos a grama todos os dias, aparamos, arrumamos os bancos de
areia. Estamos retirando árvores que caíram porque estão muito secas com
o calor. Elas estão ficando pesadas e quebrando. Passamos boa parte do
dia recolhendo essas árvores."
Heser foi morar no vale em outubro de 2019 e diz adorar seu trabalho.
Ele planeja ficar lá por alguns anos. O inverno compensa as altas
temperaturas do verão, diz ele.
Durante o tempo livre, ele gosta de jogar golfe no campo que se esforça
tanto para manter. Mas isso significa começar bem cedo, às 7h, para
aguentar o calor, e passar por 18 buracos.
"Adoro golfe", diz ele. "Quando cheguei aqui, a temperatura estava
ótima para shorts, polo, uma cerveja gelada ou um refrigerante gelado.
Agora, se você abre uma bebida, já está quente quando você chega à parte
do percurso com grama baixa. É preciso beber rápido, o que torna o
golfe interessante!"
A temperatura de domingo foi descrita como possivelmente a mais quente
já registrada "com segurança" na Terra. Existem duas temperaturas mais
altas nos livros de registro - uma em Furnace Creek em 1913 (56°) e
outra na Tunísia em 1931 (55°). Mas isso é contestado por especialistas
em clima.
"Cientistas e meteorologistas modernos sugerem que essas duas leituras
não eram precisas", explica Simon King, da BBC Weather (serviço de
metereologia da BBC).
"Quando você tem uma temperatura enorme como esta [em Furnace Creek], a
Organização Meteorológica Mundial investiga mais e analisa muitas
informações diferentes para verificar o registro".
Christopher Burt, historiador do clima, afirma que a temperatura
registrada em 1913 no Vale da Morte é suspeita devido a outras leituras
na área naquela época. A leitura em Furnace Creek foi dois ou três graus
mais alta do que em outras estações meteorológicas ao redor, diz ele.
Esta é uma das razões pelas quais o recorde de domingo, se confirmado,
está sendo descrito por alguns especialistas dos EUA como o mais alto já
"registrado de forma confiável".
A OMM diz que está procurando verificar, mas mesmo que o faça, ela
classificará a temperatura como a terceira maior já registrada, atrás do
recorde de 1913 em Furnace Creek e o recorde de 1931 na Tunísia —
apesar das dúvidas sobre eles.
Também há o argumento que outros lugares podem ter tido temperaturas
mais quentes do que o Vale da Morte, mas os climatologistas simplesmente
não as conhecem por falta de estações próximas.
Por enquanto, Furnace Creek é o lugar com a temperatura mais alta já registrada.
"As pessoas me perguntam como é viver aqui", diz Heser. "Sabe quando
você está preparando comida, abre o forno e vem aquele bafo de ar quente
na sua cara? Essa é a sensação."
Os perigos do calor
O calor pode levar pessoas à desidratação, à exaustão e até a infartos,
problemas que podem ter consequências fatais — especialmente para
idosos, crianças e para quem tem problemas cardíacos, renais e doenças
respiratórias.
Ondas de calor, que mudam a temperatura repentinamente, podem ser mais
perigosas do que regiões onde o clima é constantemente quente, explica
Timothy Hewson, meteorologista do Centro Europeu de Previsão do Tempo de
Médio Alcance (ECMWF, na sigla em inglês). Isso porque a mudança brusca
de temperatura.
Além disso, pessoas em situação de saúde mais frágil são as que mais
sofrem se a temperaturas não caem para abaixo de 25º C durante a noite,
explica Grahame Madge, meteorologista do Serviço de Meteorologia do
Reino Unido.
Os diversos fatores fazem com que um outro tipo de medição seja
importante, além da temperatura em si: a medição da "sensação térmica",
que leva fatores como vento e umidade em consideração.
Que locais do mundo têm calor 'insuportável'?
Um estudo recente publicado na revista científica Science Advances
relatou que o mundo já está sofrendo com mais extremos de temperatura do
que no passado.
Os autores analisam a combinação de calor e umidade de 7,8 mil estações de meteorologia pelo mundo entre 1980 e 2019.
Eles dizem que a frequência de eventos meteorológicos extremos dobrou
em algumas regiões subtropicais costeiras durante o período de estudo.
Esses eventos foram encontrados repetidamente em grande parte da Índia,
Bangladesh e Paquistão, no noroeste da Austrália e ao longo das costas
do Mar Vermelho e do Golfo da Califórnia no México.
As leituras mais altas foram observadas 14 vezes nas cidades de Dhahran
e Dammam na Arábia Saudita, Doha no Qatar e Ras Al Khaimah nos Emirados
Árabes Unidos, que têm populações combinadas de mais de dois milhões.
Partes do sudeste da Ásia, sul da China, África subtropical e Caribe também foram atingidas.
O sudeste dos Estados Unidos viu condições extremas dezenas de vezes,
principalmente perto da Costa do Golfo, no leste do Texas, Louisiana,
Mississippi, Alabama e o Panhandle da Flórida. As cidades de Nova
Orleans e Biloxi foram as mais afetadas.
"Os valores mais altos que discutimos ainda são muito raros para ter
uma tendência clara, mas ocorreram predominantemente desde 2000", diz o
autor principal do estudo Colin Raymond, pesquisador do Observatório
Terrestre Lamont-Doherty da Universidade de Columbia.
De acordo com Steven Sherwood, um climatologista da Universidade de New
South Wales na Austrália, "essas medições implicam que algumas áreas da
Terra estão muito mais próximas do que o esperado de atingir um calor
intolerável constante".
"Antes, acreditava-se que tínhamos uma margem de segurança muito maior."
Quais são as áreas de maior risco?
A maioria desses incidentes tendeu a se agrupar em litorais ao longo de
mares confinados, golfos e estreitos, onde a evaporação da água do mar
fornece umidade abundante para ser sugada pelo ar quente.
É a combinação de temperatura da superfície do mar extraordinariamente
alta (TSM) e intenso calor continental que pode causar calor úmido
extremo.
Isso levanta preocupações sobre populações de áreas mais pobres, que se
aquecem rapidamente, e que não conseguirão se proteger do calor.
"Muitas pessoas nos países mais pobres em risco não têm eletricidade,
muito menos ar condicionado", diz Radley Horton, um cientista
pesquisador de Lamont-Doherty e co-autor do artigo.
"Muitas pessoas lá dependem da agricultura de subsistência, exigindo
trabalho pesado diário ao ar livre. Esses fatos podem tornar algumas das
áreas mais afetadas basicamente inabitáveis."
'Impossível viver'
Pesquisadores da mudança climática há muito alertam que a Terra
testemunhará temperaturas "quase impossíveis de sustentar vida humana"
em 2070.
Mas as condições descritas neste estudo sugerem que as temperaturas
extremas combinando calor e umidade já estão surgindo — embora
brevemente e em áreas localizadas.
Também reafirma a ideia de que essas ondas de calor úmido (e
extremamente quentes) são projetadas para se tornarem muito mais
frequentes sem reduções de emissões.
"Estamos vendo as temperaturas globais mais altas na última década e
veremos mais. Conforme o dióxido de carbono continua a aumentar, veremos
as temperaturas globais aumentarem", diz a professora Liz Bentley, da
Royal Meteorological Society, no Reino Unido.
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