Eram cerca de mil pessoas, a maioria jovens, num espaço amplo, com ótima acústica. O palco foi instalado no centro e tinha a altura ideal para que as pessoas ouvissem o palestrante e se sentissem incluídas.
Uma disposição democrática que faz todo o sentido porque, de outra forma - palco na frente, bem alto, e pessoas embaixo - colidiria com os pensamentos que foram ouvidos em silêncio quase venerador e que procuram desconstruir o sistema de poder e de acumulação de riqueza onde oprimidos repetem os opressores.
Muhammad Yunus, primeiro economista a ganhar o Prêmio Nobel da Paz, criador do Grameen Bank e do sistema de microcrédito, estava ali fazendo um convite para se repensar o atual modelo econômico e mostrar como se pode criar um negócio social.
“Cada pessoa do planeta tem capacidade ilimitada, mas o sistema econômico nos faz esquecer isso e nos pede para trabalhar para outras pessoas. Mas o ser humano foi criado para fazer as coisas para si próprio”, disse ele.
Não foi a primeira vez que ouvi uma palestra de Yunus. Em 2004, quando foi publicado aqui “O Banqueiro dos Pobres” (Editora Ática), onde ele conta a criação do Grameen Bank em 1983 e o início de sua luta contra a tentativa de o Banco Mundial intervir em seu sistema, passei a acompanhar seus passos.
Quando se tornou Prêmio Nobel (em 2006), o bengalês começou a fazer palestras mundo afora, e foi numa dessas que o conheci. A voz é sempre serena, mas o discurso foi ficando cada vez mais contundente contra a exploração do homem pelo homem.
Em 2011, Yunus foi demitido de seu próprio banco por questões internas do governo de Bangladesh e começou uma batalha para ser respeitado dentro do próprio país que ajudou a tirar da miséria com iniciativas pouco simpáticas ao mundo financeiro e corporativo.
Bangladesh foi um dos poucos países que conseguiu cumprir os Objetivos do Milênio (ODM) da ONU e teve uma queda de 75% para 25% de pessoas pobres. É com base nesse resultado que Yunus afirma sua tese: o sistema capitalista é incapaz de promover mudanças.
“Os economistas que desenharam o sistema atual se esqueceram de incluir o ser humano em suas teorias. Dizem que o ser humano é egoísta, ganancioso, mas ele é multidimensional. Tem momentos em que é egoísta, em outros é altruísta. Só que o capitalismo vê o homem apenas como um robô para ganhar dinheiro.”
A palestra de Yunus lotou o galpão do Ação & Cidadania, no Centro do Rio. Na plateia, a maioria estava ali para saber mais sobre negócios sociais, a marca que Yunus desenvolveu e está ganhando mundo. Ao meu lado, uma jovem ouvinte não se continha de exaltação a cada frase do Prêmio Nobel e, no final, disparou: “Ele é um novo Ghandi!”.
A sensação é que esta opinião estava sendo dividida pela maioria dos “pensadores de negócios sociais”, como o próprio Yunus gosta de titular aqueles que querem trilhar o caminho que ele aponta, sem acumulação de riqueza, mas pensando em criar saídas para os problemas sociais.
A Yunus Negócios Sociais chegou ao Brasil em 2013, e foi por causa dela que o Prêmio Nobel veio ao Brasil desta vez.
“Negócio social não é caridade. O dinheiro da caridade tem limitação, porque não volta, só é usado uma vez.
A caridade só tem uma vida. Negócio social tem a ver com transformação, com ajudar as pessoas, tirá-las da pobreza”, explicou Yunus para uma plateia que não piscava os olhos. Se eu fosse de qualquer empresa em busca de mais diálogo com os jovens, sinceramente, prestaria atenção a esse movimento.
Como Prêmio Nobel, Yunus foi instado a falar ainda mais depois de sua palestra que durou pouco mais de uma hora. Numa dinâmica interessante chamada Aquário, organizada pela equipe do evento, alguns convidados se sentaram em círculo com o Prêmio Nobel para fazer-lhe mais perguntas.
Ali estavam Sergio Margullis, economista e secretário de Desenvolvimento Sustentável da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência; Ricardo Henriques, também economista, especializado em temas como desigualdade, pobreza, ex-pesquisador do Ipea e atual superintendente do Instituto Unibanco; o cantor Marcelo Yuka; o grafiteiro e artista visual Dingos.
E pessoas da plateia também podiam se apresentar para fazer perguntas, era só ocupar as duas cadeiras que ficavam vazias nesse círculo.
Respondendo a Yuka e a Ricardo Henriques sobre desigualdade social, Yunus afirmou que é preciso um contrassistema para atender a essa disparidade.
Talvez num recado para o economista francês Thomas Piketty, que se tornou famoso com “O Capital do Século XXI”, em que defende um imposto maior para os mais ricos, Yunus lembra que quem pagasse mais iria se tornar ainda mais poderoso. Dentro do sistema capitalista só há soluções artificiais para a desigualdade, afirma ele, vindas de pessoas que ficam longe do problema real.
“A concentração de riqueza vai se tornar cada vez mais aguda, e o pobre vai se tornar cada vez mais pobre porque este é o sistema. Se as pessoas que estão na base subirem um centímetro, isso vai criar um problema.
A concentração não é só de riqueza, é de poder também. O modo de fazer é redesenhar o sistema para redesenhar o mundo. Eu criei um outro sistema porque, no atual, tudo o que podia ser tentado para beneficiar as pessoas já foi tentado. Então eu considerei a possibilidade de pensar em outras perguntas. Por que as pessoas pobres não estão na linha predominante do sistema? Se há créditos para uns, tem que haver para todos. Por isso criei o microcrédito”.
Margullis puxou o tema das mudanças climáticas. Bangladesh, como se sabe, é um dos países que mais vai sofrer com a subida dos oceanos provocada pelo degelo das geleiras. Embora esteja no foco de Yunus a eliminação da pobreza naquele território – “Estou até pensando em lançar uma aposta: em 2030, quem encontrar um pobre no país vai ganhar 1 milhão de dólares” – a questão do aquecimento da Terra é preocupante. A certeza de que os países ricos têm que ajudar os mais pobres a vencerem o problema é a base do pensamento de Yunus.
“Eles nos destruíram e agora nós temos que lidar com isso? Vamos submergir, ter escassez de alimentos. Mas estamos já criando matriz energética solar, só que isso não interessa às grandes empresas. Temos mais conhecimento do que antes, mas ficamos piores? A economia precisa ser repensada, e essa é uma tarefa gigantesca”. Não criar danos às pessoas nem ao meio ambiente é um dos princípios básicos de um negócio social.
Cada ponto levantado pelos perguntadores era uma chance para Yunus puxar seu novelo de ideias construídas com bases sólidas, de muito estudo e muita experiência de vida, batendo o martelo contra o modelo que criou tantas mazelas. Quando a questão do trabalho entrou na pauta, o Prêmio Nobel aproveitou para falar sobre educação.
“O sistema educacional deveria incentivar a capacidade, a potência que cada um tem, não ensinar para procurar um trabalho. Todas as crianças da família Grameen têm escola, os jovens saem formados. Mas a questão é que não tem emprego para todos. E o sistema paralisa quem está desempregado, faz você se esquecer que é uma pessoa com condições de cuidar de si próprio e do outro. É preciso redesenhar essa forma de viver e promover mudanças é uma questão de imaginação, de criar”.
Entre a palestra, as perguntas e uma proposta inicial, de dividir o espaço com experiências dos pensadores sociais, foram pouco mais de quatro horas. Yunus defende o humano e a capacidade que cada um tem de reagir, de superar obstáculos. Ele fala de uma experiência que viveu e vive, de uma vida de privações.
Para quem está longe dessa vida de carências mas quer buscar outras saídas, Yunus ensina a procurar um sentido que não está na acumulação de riqueza, mas nos pequenos ganhos. E começar a ver valor em outras possibilidades, como a de criar. É instigante.
Fotos: Amelia Gonzalez
Post.N.\6.174
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