Por gerações, famílias japonesas caçaram, criaram e comeram vespas, mas esse costume corre o risco de desaparecer em breve.
Por BBC
09/08/2020 19h18 Atualizado há 14 horas
Postado em 10 de agosto de 2020 às 09h00m
"Tenho uma coisa para você." Um dos caçadores de vespas da vila me
chamou até uma pequena tenda. E desembrulhou na minha frente um pedaço
de ninho de vespa repleto de larvas.
Ele estava me oferecendo uma iguaria rara, disponível apenas uma vez
por ano, em novembro. Um quilo do ninho é vendido por 9 mil ienes (cerca
de R$ 440). Eu coloquei uma larva ainda se contorcendo na boca e engoli
(rapidamente).
Era leve, cremosa e perfeitamente palatável. O caçador de vespas e eu
continuamos a conversar, enquanto comíamos as larvas como petisco.
Estávamos no interior da província de Gifu, no maior festival de vespas
do Japão: o Kushihara Hebo Matsuri. Hebo é a palavra local para se
referir a duas espécies de vespas negras, conhecidas por não serem
agressivas e, portanto, fáceis de capturar.
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Todos os anos, no primeiro domingo de novembro, pessoas de toda a
região levam os ninhos de vespas que foram apanhados nas florestas
vizinhas para serem pesados em uma competição na qual o dono do ninho
mais pesado leva para casa um troféu. A maioria dos participantes recebe
uma ou duas picadas, e alguns compram ninhos de vespa para cozinhar em
casa.
O festival, no entanto, é apenas o fim de uma história que começa
alguns meses antes. No início do verão, é aberta a temporada de caça às
vespas nas colinas. Nas profundezas da floresta, os caçadores prendem um
pedaço de papel branco (para atrair a atenção das vespas) em uma porção
de peixe fresco e aguardam.
Logo, uma vespa aparece, mordendo a isca. E os caçadores a perseguem
enquanto ela voa em direção ao seu ninho, atravessando arbustos, riachos
e vales.
Quando finalmente localizam a entrada para o ninho da vespa no solo,
eles o desenterram e transferem para uma caixa de madeira, onde
continuam a "criar" as vespas até o outono. Os caçadores alimentam os
insetos com uma dieta à base de açúcar, água e carne crua, na tentativa
de cultivar um ninho repleto de vespas adultas e larvas a tempo do
festival.
O consumo de vespas costumava ser difundido em todo o Japão. No
entanto, este hábito está morrendo, ficando restrito principalmente à
geração cada vez menor de idosos de Ena, na província de Gifu, onde está
localizada a vila Kushihara, e de Nakatsugawa, a nordeste.
De acordo com Kenichi Nonaka, professor de Estudos Culturais
Interdisciplinares da Universidade Rikkyo, em Tóquio, que estuda a
região há mais de 30 anos, as origens dessa tradição gastronômica única
são um mistério.
Algumas teorias sugerem que as vespas já foram uma fonte valiosa de
proteína para essa comunidade do interior, mas Nonaka discorda: "100g de
vespas negras contêm relativamente um alto teor de proteínas, mas, na
realidade, ninguém come essa quantidade de uma vez".
Depois de pesquisar outros lugares no Japão onde comer vespas negras
era comum, Nonaka descobriu que os insetos normalmente só eram apanhados
quando as pessoas os encontravam por acaso — e eram consumidos apenas
como fonte suplementar de alimentos. Basicamente, apanhar vespas negras
era a versão com insetos da colheita de amora.
Mas, segundo Nonaka, o que torna Kushihara e as regiões vizinhas únicas
é que, enquanto indivíduos em outras áreas do Japão apanhavam os ninhos
sozinhos, a população local procurava ativamente por vespas como uma
atividade social e posteriormente as criavam fora de suas casas.
Como resultado, as vespas negras eram frequentemente servidas durante
as celebrações locais, tornando a prática de caça às vespas
profundamente enraizada na cultura e identidade regional.
Dada a importância comunitária das vespas para Kushihara, talvez não
surpreenda que um grande festival popular tenha sido criado em 1993,
quando a geração mais velha de caçadores de vespas diminuiu, a fim de
salvar a tradição. E, enquanto outras regiões realizam competições
menores de vespas, Kushihara foi a única a receber uma cobertura
significativa da imprensa, o que ajudou a consolidar sua reputação.
No entanto, a cidade de Ena sofre com muitos dos problemas que afetam o
Japão a nível nacional. A população em declínio e o êxodo rural
deixaram as ruas vazias e casas abandonadas.
Kushihara deixou de ser um município independente, sendo incorporado à
cidade de Ena, à medida que a população local diminuiu (a população de
Ena caiu aproximadamente 12% entre 2000 e 2015, somando 51.073
habitantes).
Em 2010, os organizadores idosos do festival começaram a falar em
acabar com o evento, até que alguns moradores mais jovens se dispuseram a
levar adiante a tradição. "Enquanto existir uma pessoa viva que ame
vespa, teremos motivação suficiente para manter a tradição", afirma
Daisuke Miyake, de 42 anos, guarda florestal local. "Hebo é uma maneira
de conectar as pessoas."
Seis anos atrás, Miyake e outros jovens da cidade assumiram a direção
do festival. Embora poucos deles tenham o hábito de apanhar e criar
vespas, eles compreendem o quanto esses insetos significam para as
gerações mais velha.
Às 7h30 do dia do festival, Miyake já estava a todo vapor, subindo em
uma árvore para ajudar a pendurar um cartaz. Enquanto isso, me aproximei
dos únicos não-organizadores por perto.
Quatro idosos levaram seus banquinhos e aguardaram sentados
pacientemente no meio do gramado. O festival só começaria em mais ou
menos uma hora, mas eles estavam ansiosos para serem os primeiros da
fila e, assim, conseguir escolher os melhores ninhos à venda.
Uma vez que eles garantiram sua vaga, fomos juntos às barracas do
festival, que apresentavam uma variedade de pratos à base de vespa.
Estava de olho nos espetinhos de vespa com chocolate, quando um dos meus
novos companheiros apareceu com um pote de vespas fritas.
Como alguns outros anciãos de Kushihara, eles caçam vespa mandarinia
japonica (as vespas gigantes japonesas), conhecidas pela agressividade e
poder do ferrão. Não são insetos que você cria em casa.
"Você come vespas, certo?", perguntou um deles, em tom desafiador.
"Vai em frente! Escolhe uma grande!”, emendou outro.
O grupo caiu na gargalhada. Peguei uma de tamanho médio com o palitinho
e mastiguei cuidadosamente. Era levemente crocante e, devo admitir,
bastante apetitosa. Exatamente o tipo de petisco que cairia bem com uma
cerveja. Um deles já estava sentado em seu banquinho com uma bebida na
mão e um sorriso no rosto.
Logo, estávamos devorando um dos pratos mais populares do festival, o
hebo gohei mochi: arroz grudento grelhado em um palito revestido com um
molho grosso e doce feito de missô, amendoim e, é claro, vespas. É um
prato que exige que você soque o arroz e amasse as larvas de hebo.
Demora horas para ser preparado, mas é servido em ocasiões
comemorativas há séculos na região. Uma longa fila dava voltas em
direção ao balcão, onde uma equipe cobria habilmente o mochi com o molho
e grelhava na sequência, em uma linha de produção bastante afinada.
Um grupo de mulheres mais jovens usando camisetas escrito "Garotas
Hebo" vendia hebo gohan, um prato de arroz misturado com vespas. Elas
decidiram tomar a frente neste ano depois que várias mulheres idosas da
vila se aposentaram do preparo de alimentos para o festival. Estavam
acordadas desde as 4h para cozinhar centenas de porções de arroz, e
haviam preparado hebo gohei mochi no dia anterior também.
"Eu como hebo desde criança, era uma comida comum. Mas, desde que
comecei a fazer gohei mochi, quero compartilhar essa cultura com todos”,
diz Shoko Miyake, esposa de Daisuke.
Nos últimos anos, houve um interesse crescente pela entomofagia
(consumo de insetos por seres humanos), tanto no Japão quanto
internacionalmente, o que tem levado um número maior de visitantes ao
festival. Não só uma oportunidade para a revitalização econômica da
região, como também uma chance para a população local se reconectar com
seu patrimônio cultural.
No entanto, ainda existe uma preocupação se as gerações mais novas vão
adotar a tradição de caça a vespas como seus pais ou avós. Enquanto
muitos ficam felizes em ajudar no festival, alguns não gostam muito de
comer vespa, quanto mais de criá-las.
A questão mais premente é quem vai passar adiante as técnicas de caça.
Muitos moradores mais jovens ainda precisam aprender, mas demonstram
pouco entusiasmo. E à medida que mais gente sai da região de Kushihara
em busca de trabalho, sobra pouco tempo para cultivar um hobby tão
específico.
Ciente do problema, o chefe do comitê executivo do festival, Fumitaka
Ando, está organizando uma missão de caça, em julho deste ano, para um
pequeno grupo de moradores, incluindo as “Garotas Hebo”. Ele mesmo só
começou a caçar vespas há três anos. E acredita que a recente
popularidade do festival é um incentivo.
“O número de jovens voluntários aumentou, e, nesse ano, tivemos as meninas. Kushihara se tornou uma equipe.”
Depois do festival, fui parar na casa de Daisuke e Shoko, sentada em
volta da mesa de jantar com as três filhas do casal. Shoko estava no
fogão, cozinhando as vespas com um molho shoyo doce, para fazer uma
cobertura para o arroz que tinha acabado de preparar. Algo que ela
costumava fazer com os pais na infância. Continuamos a conversar
casualmente enquanto devorávamos o ninho de vespa, e as crianças
observavam com o semblante franzido.
No fim das contas, a cultura hebo é tanto sobre família, amigos e identidade local, quanto sobre comer insetos.
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