Pelo menos três grupos que estão no topo da pirâmide se beneficiam de uma grande lista de isenções e deduções permitidas pela legislação.
Por BBC
06/09/2020 07h53 Atualizado há 4 horas
Postado em 06 de setembro de 2020 às 12h00m
A base da pirâmide social é, proporcionalmente, o grupo que mais paga imposto no Brasil.
Quase metade de tudo o que o governo arrecada vem de tributos cobrados
sobre bens e serviços. É a chamada tributação indireta, que não leva em
consideração a renda de quem está comprando: a alíquota que incide sobre
a geladeira e a máquina de lavar é a mesma para o rico e para o pobre.
É a lógica inversa do Imposto de Renda,
no qual quem ganha mais, paga mais. E o Brasil, ao contrário de países
como México e Argentina, isenta a parcela mais pobre de pagamento — todo
aquele com renda mensal menor que R$ 1,9 mil não precisa recolher IRPF.
Crescimento do Brasil passa por reforma tributária, afirma Rodrigo Maia sobre PEC
Assim, o imposto é progressivo — ou seja, mais justo. Mas com um porém:
entre os brasileiros com maior renda, o IR acaba beneficiando os mais
ricos.
Quem mais paga é a classe média assalariada, aquela que tem carteira assinada.
Carga tributária brasileira
Distribuição por base de incidência
Fonte: Fonte: Receita Federal/Carga Tributária do Brasil Tabulagem: BBC
"O IRPF tem um cipoal de isenções e deduções que beneficiam a classe
média e alta, o que faz com a própria progressividade do imposto seja
quebrada no topo da distribuição de renda", diz a economista Luana
Passos, com mestrado e doutorado em economia pela UFF e estudiosa do
tema da tributação.
Entenda, a seguir, como a legislação — que a equipe econômica estuda
modificar na fase três da reforma tributária — beneficia três grupos que
estão no topo da pirâmide: empresários, médicos, advogados e outros
profissionais liberais PJ e os 5% mais ricos.
Empresários
No Brasil, a renda que vem do recebimento de dividendos (distribuição
de lucro das empresas) é isenta do pagamento de imposto de renda — algo
que é pouco comum no mundo.
Isso não quer dizer que o dinheiro que entra no bolso do acionista
nunca foi tributado. Sobre o lucro das empresas incidem, via de regra,
dois impostos: o imposto de renda da pessoa jurídica (IRPJ) e a
Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).
Na prática, entretanto, as alíquotas efetivas são muitas vezes menores
que as do IRPF (que chega a 27,5%) e, ao contrário deste último, o
imposto não vai crescendo à medida que a renda aumenta.
Isso quer dizer, de forma grosseira, que um empresário que recebe R$ 50
mil por mês na forma de dividendos muitas vezes paga proporcionalmente
menos imposto sobre a renda do que um trabalhador com carteira assinada
que recebe R$ 5 mil.
A alíquota do IRPF começa em 7,5% para quem recebe acima do limite de
isenção (cerca de R$ 2 mil) e vai crescendo progressivamente até chegar
em 27,5%, cobrado quem tem remuneração maior que R$ 4.664,68, sobre tudo
o que excede esse valor.
Já as empresas podem pagar IRPJ em diferentes modalidades, a depender
do seu porte e de suas características: no lucro real, no lucro
presumido, por meio do Simples.
Cerca de 76% das empresas estão enquadradas no regime do Simples, que
tem alíquotas progressivas que variam de 4% a 33% e englobam 8 impostos,
entre eles o IRPJ.
O Simples tem uma particularidade no Brasil.
Como o limite máximo de
receita bruta para se enquadrar no regime é alto (de R$ 4,8 milhões por
ano), ele acaba incluindo pequenas empresas que não são tão pequenas
assim. No Reino Unido, por exemplo, o limite máximo de receita para se
enquadrar no regime equivalente é de US$ 119 mil; na França, de US$ 104
mil, conforme os dados da OCDE.
Já entre as empresas enquadradas no lucro real (em geral as grandes), a
alíquota marginal é salgada, de 34% sobre o lucro (IRPJ e CSLL).
Em boa parte dos casos, entretanto, as empresas não recolhem 34% sobre o
lucro. Primeiramente, porque o lucro contábil não é o mesmo que o lucro
fiscal, aquele levado em conta na hora de calcular o imposto. Há certas
categorias de despesa (como as despesas com empréstimos, por exemplo) e
incentivos fiscais que podem ser excluídos da base de cálculo, que
fazem com que a alíquota efetiva seja inferior a essa.
Entre as companhias abertas, a média é de 22%, como aponta uma
apresentação feita pelo economista Sérgio Gobetti, que há anos estuda o
Imposto de Renda e, mais especificamente, a isenção da tributação de
dividendos.
O auditor da Receita Federal Fábio Ávila de Castro acrescenta que, na
prática, o Brasil tributa menos o lucro (em proporção do PIB) do que
vários países da América Latina, como México, Colômbia e Peru. Isso pode
indicar que muitas empresas fazem uso de um planejamento tributário
agressivo — ou seja, usam todos os artifícios previstos dentro da lei
para reduzir ao máximo a base de incidência do imposto.
O economista, que estudou o IRPF tanto em seu mestrado quanto no
doutorado, pondera ainda que, apesar de o imposto de renda no Brasil ser
bastante progressivo, ele nem sempre considera a chamada capacidade
contributiva — a ideia de que aqueles que têm mais devem pagar mais,
expressa na Constituição no artigo 145.
Entre aqueles que estão entre os 1% mais ricos, diz o especialista, ele
chega a ser regressivo: quanto maior a renda, menor a incidência de
IRPF.
E em um país de renda média e com profundas desigualdades como o
Brasil, não é preciso ser milionário para estar entre os 1% no topo da
pirâmide. Para se ter uma referência, a Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (Pnad) Contínua referente a 2019 apontou que, quando se leva
em consideração a renda do trabalho, a renda média dos 1% mais ricos é
de R$ 28 mil, quase 34 vezes mais do que o rendimento médio dos 50% da
população com os menores rendimentos (R$ 850).
Advogados, médicos e outros profissionais PJ
A isenção da tributação de dividendos tem outro efeito colateral.
Quem recebe dividendos
Ocupação | Em R$ mil |
Dirigente, presidente, diretor | 888,8 |
Médico | 208,5 |
Advogado | 100,1 |
Gerente, supervisor | 148,1 |
Engenheiro | 102,7 |
Ela tem "empurrado" uma massa de trabalhadores do IRPF para o IRPJ,
alguns por iniciativa própria e outros por pressão dos empregadores. É a
chamada pejotização.
No primeiro caso, alguns advogados, médicos e outros profissionais
liberais muitas vezes optam por declarar a renda como pessoa jurídica
porque, dessa maneira, recolhem um percentual menor de imposto sobre a
renda.
Esse tipo de distorção, explica a economista Luana Passos, gera uma
quebra da chamada equidade horizontal no IRPF, "na medida em que grupos
de contribuintes com rendimentos próximos, mas fontes de renda
distintas, são tributados de modo diferente".
Na prática, isso significa que um advogado contratado com carteira
assinada, de maneira geral, paga mais imposto sobre sua renda do que um
colega que ganha a mesma coisa e é tributado, por exemplo, pelo lucro
presumido.
Além de pagar menos imposto, esse segundo profissional não está sujeito
a alíquotas progressivas, lembra Castro. Assim, ele pagará o mesmo
percentual não importa o nível de renda — desconsiderando, portanto, sua
capacidade contributiva.
O economista Fernando Gaiger, pesquisador do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea), lembra, por outro lado, que nem todo PJ o é
por opção.
Há vários trabalhadores nessa modalidade por pressão direta ou indireta
de seus empregadores, que muitas vezes querem escapar da tributação
sobre a folha de pagamentos.
A contribuição previdenciária patronal, de 20% sobre o valor da
remuneração, é uma das tributações mais pesadas pagas pelas empresas por
cada empregado contratado com carteira assinada.
"O Imposto de Renda é mais consequência do que causa, pois o grande
problema é a tributação pesada que se faz no Brasil da mão de obra e da
folha salarial", diz José Roberto Afonso, professor do Instituto
Brasiliense de Direito Público (IDP).
Isso "empurra" os empregadores a contratarem cada vez mais
trabalhadores sem carteira assinada ou de forma legal, mas em
modalidades que desviam do imposto sobre folha, como MEI, Simples ou
empresas do regime do lucro presumido.
E essa distorção tem outras duas consequências práticas danosas, uma
para a Previdência e outra para os próprios trabalhadores.
De um lado, ela vai erodindo a base de arrecadação do INSS. Com menos
empregados e empresas contribuindo, o país tem menos recursos para pagar
aposentadorias e benefícios. De outro, forma um exército de
trabalhadores que estão à margem do sistema de proteção social e que não
têm acesso a seguro-desemprego, a 13º salário, plano de saúde e FGTS.
Todos os especialistas com quem a reportagem conversou ressaltam que
não existe uma solução simplista para todas essas distorções, justamente
porque há várias questões diferentes interconectadas.
"A discussão sobre equidade tributária precisa ser baseada mais em
dados, números, fatos, do que em discursos", diz Afonso. "Estamos
flutuando entre extremos nesse debate. Até poucos anos atrás, ninguém se
interessava pelo assunto. Agora, se fala muito, porém, sem evidências
empíricas", afirma o economista.
Para ele, para o Brasil passar a tributar os dividendos — possibilidade
já aventada pelo ministro da economia, Paulo Guedes —, deveria reduzir
as alíquotas marginais de IRPJ, que são altas se comparadas aos países
da OCDE, por exemplo.
As propostas desenvolvidas pelos economistas Rodrigo Orair e Sérgio
Gobetti, que estudam o tema há bastante tempo, também vão nesse sentido.
Os 5% mais ricos
O Imposto de Renda também acaba beneficiando os mais ricos de outra
forma: as deduções com gastos em saúde e educação e as isenções além da
tributação de dividendos.
Pela lei, aposentados e pensionistas com algumas doenças crônicas, por
exemplo, estão dispensados de recolher, sejam eles ricos ou pobres.
Na lista constam 16 doenças, entre elas Aids, hanseníase e tuberculose ativa.
Cerca de 580 mil pessoas lançaram mão dessa isenção em 2016. Do total
da renda isenta do imposto, 80% pertencia aos brasileiros que estão
entre os 5% mais ricos, como mostra um estudo do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea) publicado em novembro do ano passado e
assinado pelos economistas Fernando Gaiger e Luana Passos e pelo auditor
de finanças do Tesouro Rodrigo Fernandes.
Perda de arrecadação potencial
Gasto tributário | Em R$ bilhões |
Simples Nacional | 71,8 |
IRPF - Rend. Isenta/Não tributável | 30,2 |
Entidades sem fins lucrativos | 26,7 |
Agricultura e agroindústria | 25,3 |
Zona Franca de Manaus | 19,4 |
IRPF Deduções | 19,1 |
Total | 297,9 |
Quando foi criado, em 1988, o benefício fazia sentido, diz Gaiger: o
SUS ainda era embrionário e milhares de brasileiros faziam tratamento
contra HIV, por exemplo, com recursos próprios.
Essa não é a realidade hoje. Cerca de 540 mil pessoas fazem o tratamento hoje, mas a grande maioria pelo SUS.
"Você acaba dando benefício para quem não precisa e não dá para outros doentes graves", pondera.
A análise também verificou que as deduções de gastos com saúde e
educação — que, na prática, diminuem o montante sobre o qual o imposto
vai incidir — também beneficiam o topo da pirâmide.
No caso da saúde, em que não há limite para as deduções, 76% da renda
isenta pertencia aos 5% mais ricos. Na educação, em que existe um teto
para o valor que pode ser descontado, o percentual foi de 67%.
Nesse caso, a discussão é mais profunda. Quando o país começou a
universalizar a educação nos anos 1970, criou uma espécie de "pacto
fiscal" com a classe média, diz Gaiger.
As deduções do IR seriam uma forma de subsidiar o consumo privado
diante de uma queda esperada na qualidade dos serviços públicos, que
seriam estendidos a toda a população, e não mais a uma minoria.
Para o economista, entretanto, essa é uma ideia falha, já que o
fundamento que embasa o sistema tributário não é pagar para receber um
benefício em troca pari passu.
Em teoria, a contribuição é feita não para benefício pessoal, mas da
sociedade como um todo — em uma lógica de solidariedade. Uma vez que a
sociedade toda prospera, o indivíduo também colhe os frutos. É a ideia
do contribuinte como cidadão, e não como consumidor, ele acrescenta.
Da forma como está colocado, o sistema atual acaba criando uma clivagem
na sociedade: quem tem condições acessa o sistema privado e, quem não
tem, fica no SUS e na escola pública.
Se as classes médias e altas também usassem os serviços públicos,
provavelmente haveria maior pressão para uma melhora da qualidade, diz
Gaiger, com benefício para toda a sociedade brasileira.
Apesar de acreditar que "todos esses subsídios são discutíveis", o
especialista ressalta que qualquer proposta de reforma que mexa neste e
em outros aspectos da tributação deve ser embasada em estudos de impacto
aprofundados.
No caso das deduções, por exemplo, é preciso avaliar como a redução da
renda disponível nessa fatia da população impactaria a economia.
Ele acrescenta ainda que muitas vezes é preferível fazer algumas
mudanças em períodos de crescimento econômico, quando há menor restrição
dos rendimentos das diferentes classes sociais.
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