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segunda-feira, 11 de abril de 2011

Trio brasileiro percorreu continente projetando rodovia entre matas e montanhas...










##= RIO - Uma estrada que deixa o Rio, passa São Paulo e Mato Grosso e adentra o Paraguai; descamba para o sul, rumo a Buenos Aires, de onde sai para buscar os Andes, serpenteando as montanhas até Lima. Lá, troca a cordilheira pela selva e equilibra-se entre pântanos até o Panamá. Corta o oeste da Costa Rica a Guatemala, dribla rios mexicanos e, num trecho de poucas curvas, sobe do Texas a Washington. Esta rodovia existe, quase inteira, e atende por Carretera Pan-Americana. Foi idealizada em 1925 e imediatamente esquecida, como um plano irrealizável. Mas não padeceu muito tempo na gaveta. Três anos depois, uma trinca de expedicionários brasileiros decidiu encarar o caminho. Entre a mata virgem e vias já pavimentadas, gastaram dez anos. Em sua odisseia continental, conviveram com tribos e presidentes; foram aclamados pelo povo e postos para correr por onças pintadas; caíram de abismos e nausearam-se com a altura.
O caminho foi desbravado sobre as rodas de dois Ford Modelo T - um deles doado pelo GLOBO, patrocinador oficial da aventura. A partir do próximo sábado, o historiador Beto Braga passará 250 dias refazendo a trajetória dos expedicionários. Braga lançou, esta semana, o livro "O Brasil através das Três Américas", um diário de bordo sobre a primeira viagem.

- Se fosse americano, o trio teria uma estátua em cada cidade por que passaram nos EUA. Mas, no Brasil, somos pobres de heróis - lamenta. - Como ninguém lembrava dessa história, resolvi resgatá-la. Sem essa viagem, a Carretera não teria existido. Hoje ela é uma realidade em toda a América... à exceção de nosso país, que não construiu os ramais projetados.
A expedição foi concebida pelo tenente Lêonidas de Oliveira. O militar convidou o oficial da Aeronáutica Francisco Lopes da Cruz, profundo conhecedor de engenharia, para acompanhá-lo. Quando procuravam por patrocínio, acabaram encontrando também o mecânico Mário Fava, que ofereceu-se para acompanhá-los.

O automóvel escolhido dispensava apresentações. Um Ford T, modelo que era menina dos olhos da fábrica de companhia de Henry Ford, foi doado por Euricles de Mattos, então diretor do GLOBO. Antes de ganhar a América, o veículo passara dez anos distribuindo jornais Rio afora. Outro carro do mesmo modelo juntou-se à aventura em São Paulo.
- O mundo falava sobre a necessidade de abrir novas estradas. Este era, inclusive, o lema do presidente Washington Luís - ressalta Braga. - A principal motivação de Leônidas era difundir o pan-americanismo, a crença em um continente que pensasse junto em seu desenvolvimento. Mas, quando ele lançou-se a este desafio, talvez não tivesse noção do problema que estava arrumando.

Nos 15 países por que passou, comandante e companheiros encontraram todos os palácios abertos. No caminho, porém, não havia apenas civilizações. Ainda em Mato Grosso, uma onça atacou a trupe, salva pelos cães que a acompanhava. Na Colômbia, a vilã foi uma nuvem de arenillas, um mosquito que entrava pelas narinas e deixava marcas negras na pele.

O comandante padeceu com insetos, mas também com a água contaminada dos rios e infecções - uma delas quase o mata no México. E a fome. Caminhos exóticos exigem nova dieta. No planalto boliviano, o cardápio era à base de coelhos. O deserto de gelo dos Andes exigiu hábitos ainda mais regrados: lá, a única opção era mascar as folhas de coca dos índios quéchuas.
Não fosse a ajuda alheia, aliás, o trio não teria completado seu itinerário. Às vezes, havia muitos em volta. Houve trechos em que até 100 pessoas uniram-se a eles para abrir caminho pela mata. Também foi graças a um grupo extenso que eles chegaram ao Panamá. Os pântanos capazes de engolir carros inteiros exigiram que os veículos fossem desmontados, e suas peças levadas nas costas.

Na falta de um apoio humano, havia os cachorros para fazer companhia. E foram muitos. No Equador, um Ford perdeu o controle em uma ladeira, rodou mais de 100 metros e suas ferragens mataram Tudor, um dos cães, por asfixia. "Parece incrível nossa pouca sorte com mascotes, este é o décimo que perdemos desde o Rio", exasperou-se Leônidas.

Fava, o mecânico, sobreviveu ao acidente - estava inteiro sob o carro revirado. No Peru, o aventureiro já ficara gravemente ferido ao despencar de um abismo dentro de outro veículo. Só não morreu porque o automóvel, durante a descida, enroscou-se em uma árvore, onde balançou, à mercê dos ventos, até ser resgatado. Mais de 60 anos depois, quando foi entrevistado por Braga, ele ainda orgulhava-se do apelido que recebera da imprensa pelo caminho: o Intrépido Mecânico.

- Fava é, para mim, o grande herói dessa expedição - opina o historiador. - O Leônidas comandou, o Lopes da Cruz sabia muito sobre engenharia. Mas não haveria viagem sem um mecânico para manter os carros andando. E na época não havia posto de gasolina, borracharia, nada.

Aqui e ali, o que manteve os carros na estrada foi o improviso. A falta de combustível foi resolvida na Bolívia com uma bebida alcoólica indígena, à base de milho. Na Colômbia, os pneus estourados foram enchidos com capim - e assim rodaram até a Guatemala, onde o governo daquele país patrocinou uma recauchutagem dos veículos.

Nas paradas palacianas, o trio aproveitava para inteirar-se das notícias.
O observador Francisco Lopes da Cruz, profundo conhecedor de engenharia. Foto de divulgação
- Um ano após saírem, houve o crack da bolsa. Sem saber, eles estavam indo buscar dinheiro em um país que quebrou - ressalta Braga, lembrando a esperança do trio de que os EUA financiassem a rodovia. - Depois, o projeto da união pan-americano é estremecido quando os paulistas tentam separar-se do país na Revolução Constitucionalista. Foi um choque para o comandante Oliveira.

Enquanto o Brasil via Getúlio Vargas transformar-se em ditador com a instalação do Estado Novo, os expedicionários entravam triunfantes nos EUA. Levavam um orçamento de US$ 100 milhões para conclusão da Carretera - o valor seria cinco vezes maior, se boa parte do caminho já não estivesse pavimentado.

Henry Ford os recebeu em sua fábrica e fez uma oferta generosa (e recusada) para comprar os automóveis. O presidente Franklin Roosevelt elogiou a rodovia. Mas ninguém pôs a mão no bolso pela Carretera.

Nos trinta anos seguintes, porém, a rodovia foi construída, respeitando o projeto idealizado pelo trio. Cada país fez sua parte - menos o Brasil.


Após a expedição, a brava dupla de Ford T foi levada aos arredores do Museu do Ipiranga, em São Paulo. Por falta de conservação, um dos carros ainda apodrece ali. Uma imagem triste, mas fiel, da amnésia coletiva que sucedeu a viagem.

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