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domingo, 9 de maio de 2021

Como mito de estátuas gregas brancas alimentou falsa ideia de superioridade europeia

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Crença foi propagada ao longo da história e acabou erroneamente usada por quem via na falsa ausência de colorido e ornamentos sinal de cultura mais elevada e sofisticada.
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TOPO
Por BBC

Postado em 09 de maio de 2021 às 19h05m


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Brancura era fruto de ignorância e distorção, escreve Elisa Kriezis — Foto: Getty Images via BBC
Brancura era fruto de ignorância e distorção, escreve Elisa Kriezis — Foto: Getty Images via BBC

Ao pensar numa estátua da Grécia antiga, muito provavelmente a imagem que vem à sua mente é de uma escultura feita em mármore perfeitamente polido e muito branco. As vestimentas, igualmente brancas, cobrindo corpos brancos, muitas vezes rodeados por objetos essencialmente brancos.

Mas, apesar disso refletir a realidade que conhecemos atualmente, essa imagem monocromática pode estar tão distante da realidade histórica como a distância que separa a Grécia do Brasil.

Nesta reportagem, Elisa Kriezis, da BBC News Brasil, explica como surgiu essa falsa ideia, a quem serviu e como o mito do branco começou a ser descontruído.

"Eu nasci na Grécia, filha de pai grego e mãe alemã. Como muitos, cresci achando que as estátuas e as estruturas gregas que me rodeavam sempre foram brancas, como o mármore usado como matéria-prima para sua criação, ou, em um menor número de casos, escuras, quando eram feitas de bronze.

E vi essa estética "sofisticada" ser replicada das mais diversas formas pelo mundo ao se retratar a Grécia antiga.

O mito de que suas estátuas eram monocromáticas, principalmente brancas, foi propagado ao longo da história, e acabou erroneamente usado pelos que viam na falsa ausência de colorido e ornamentos um sinal de uma cultura mais elevada e sofisticada, resultado da superioridade de brancos europeus.

Entretanto, poucos sabem que toda aquela brancura era fruto de ignorância e distorção.

Do bronze ao mármore

A maioria das estátuas gregas que você encontra em museus pelo mundo é feita de mármore. Afinal, era uma pedra bastante disponível na Grécia e em seus arredores e segundo os escultores, mais fácil de ser trabalhada.

Mas aí, já surge o primeiro erro, a primeira distorção histórica.
As Cariátides em mármore, e um dos Guerreiros de Riace, feito em bronze. — Foto: Getty Images via BBC
As Cariátides em mármore, e um dos Guerreiros de Riace, feito em bronze. — Foto: Getty Images via BBC

Muitas das estátuas que se conectavam de alguma forma a estruturas maiores, como prédios, eram de fato feitas de mármore. Mas a maioria das esculturas que não contavam com esse apoio estrutural era feita de bronze por ser um material de maior resistência.

Como o bronze é um material facilmente reaproveitável, então, sobraram poucas estátuas feitas desse metal para "contar a história", pois muitas acabaram recicladas, transformadas em outros objetos. Isso fez com que as estátuas em mámore branco acabassem prevalecendo ao longo do tempo.

E mais: a escolha do material - mármore ou bronze - para a produção dos objetos de arte não tinha nada a ver com a cor clara original da pedra ou escura do metal. O local em que a estátua seria colocada era um fator muito mais determinante do tipo de material a ser usado, como explico mais adiante.

Originais e réplicas

A arte da escultura grega atingiu seu ápice nos séculos 4 e 5 antes de Cristo, ou seja, há 2,5 mil anos. Foi nesse período que escultores famosos como Phidias e Praxiteles criaram sua obra, que sobrevive até hoje.

Ilustrações de Phidias e Praxiteles, escultores famosos da Grécia antiga, ilustração do Parthenon na Acrópole de Aténas — Foto: Getty Images via BBC
Ilustrações de Phidias e Praxiteles, escultores famosos da Grécia antiga, ilustração do Parthenon na Acrópole de Aténas — Foto: Getty Images via BBC

Quinhentos anos depois, os romanos expandiram seu império e dominaram o mundo mediterrâneo, incluindo aí, claro, a civilização grega.

Os romanos admiravam a cultura e a arte da Grécia e criaram sua estética à imagem e semelhança da dos gregos. Sendo assim, a demanda por réplicas de estátuas gregas era enorme no Império Romano. Elas se tornaram objeto de desejo para decorar casas da elite romana, praças públicas e até os famosos banhos romanos.

No processo de reproduzir estátuas gregas, muitas originalmente feitas de bronze, os escultores acabaram criando réplicas em mármore.

Essas réplicas com material distinto do original são identificadas por terem barras de apoio, normalmente disfarçadas de troncos de árvores, de colunas em estilo antigo ou de tecidos.

O mármore não tem a mesma resistência do bronze e precisa de uma espécie de "mãozinha" para se manter de pé.
Reconstruções da estátua de Diadoúmenos em que podem ser vistas as colunas de suporte — Foto: Getty Images via BBC
Reconstruções da estátua de Diadoúmenos em que podem ser vistas as colunas de suporte — Foto: Getty Images via BBC

Há registros de 20 cópias de uma mesma estátua cuja original grega era feita de bronze, mas que entrou para a História como se fosse de mármore - e com o apoio para não cair.

A prevalência do mármore está ligada ao fato de o bronze ser um metal nobre e reutilizável.

Tesouros

O Mar Mediterrâneo continua sendo, ainda hoje, a principal fonte do que resta das estátuas de bronze, verdadeiros tesouros afundados em naufrágios.

Mas vamos voltar a falar das réplicas das estátuas gregas feitas pelos romanos.

Na maioria dos casos é a cópia romana que a gente vê nos museus, por ter sobrevivido, por ser a versão mais recente.

Então, podemos dizer que a nossa percepção da Antiguidade a partir das estátuas é baseada principalmente nas cópias e não na realidade histórica das originais.

Nessa cabeça grega a gente consegue ver vestígios claros de cor.

A busca de vestígios das cores originais

O extenso trabalho feito por um casal de pesquisadores alemães, que se debruçou sobre centenas de estátuas antigas em busca de vestígios das cores originais é hoje a fonte mais inquestionável da conclusão de que as estátuas eram multicoloridas. Mesmo a olho nu é possível enxergar esses vestígios em algumas delas.

"Ainda há muita cor preservada nas estátuas. Dá para ver a olho nu. E a cor não está apenas nos ornamentos das roupas. Está toda a superfície de uma escultura", diz o arqueólogo Vinzenz Brinkmann, diretor do departamento de Antiguidade do Instituto Liebighaus, na Alemanha]. Brinkmann estuda o tema há quarenta anos.

Atualmente, não é preciso recorrer aos olhos. A tecnologia permitiu um exame ainda mais detalhado com análises feitas com ajuda de luzes ultravioleta e infravermelha e também de processos químicos avançados capazes de revelar uma imagem bastante precisa da Antiguidade.

Com base nessas técnicas, Brinkmann criou, junto com sua esposa, a também arqueóloga, Ulrike Koch-Brinkmann, a exposição Deuses em Cor, com mais de 60 réplicas das estátuas em sua cor original, cheias de ornamentos, símbolos de animais e até mesmo pintadas de ouro.

As restaurações são feitas com pigmentos autênticos identificados nas esculturas originais.

Vinzenz Brinkmann e sua esposa Ulrike Koch Brinkmann, reconstruíram mais de 60 estátuas — Foto: LIEBIGHAUS SKULPTURENSAMMLUNG
Vinzenz Brinkmann e sua esposa Ulrike Koch Brinkmann, reconstruíram mais de 60 estátuas — Foto: LIEBIGHAUS SKULPTURENSAMMLUNG

Como a Peplos Kore, a escultura de uma mulher jovem que decorava um túmulo, os guerreiros de Riace, achados no Mar Mediterrâneo, o Kouros, um jovem nu que reflete a influência do Egito na escultura grega com uma postura mais rígida, ou o chamado sarcófago de Alexandre, o Grande (que, na verdade, não era o sarcófago dele), achado no que hoje é o Líbano, e que tem detalhes impressionantes de cor, são todos bons exemplos da decoração ricamente colorida usada nos originais.

E de onde veio essa tradição de colorir estátuas com inúmeras outras cores além do preto e branco?

Trabalho de reconstrução do arqueiro de Afaia — Foto: LIEBIGHAUS SKULPTURENSAMMLING
Trabalho de reconstrução do arqueiro de Afaia — Foto: LIEBIGHAUS SKULPTURENSAMMLING

Os gregos não apenas influenciaram o mundo, mas foram influenciados pelos povos às margens do Mar Mediterrâneo, como o Egito, e pelas populações que habitavam o Oriente Médio.

O intercâmbio entre eles não era só comercial, mas também cultural. E a forte tradição de escultura - colorida - está diretamente ligada a estas trocas.

Ou seja, não é verdade que ao atingir o que se considera ser o ápice de sua civilização, os gregos rejeitaram a influência recebida tendo excluído as cores.

A arte às margens do Mar Mediterrâneo e do Oriente Médio era colorida — Foto: Getty Images: Daniel Petty, The Denver post, Valery Sharifulin Tass, Universal History Archive, Universal Images Group, Library of Congress/Corbis/VCG
A arte às margens do Mar Mediterrâneo e do Oriente Médio era colorida — Foto: Getty Images: Daniel Petty, The Denver post, Valery Sharifulin Tass, Universal History Archive, Universal Images Group, Library of Congress/Corbis/VCG

Mas como se formou a ideia de uma Antiguidade incolor?

Primeiro vamos observar a Idade Média. A chamada Idade das Trevas foi um período em que a apreciação da cultura grega antiga se perdeu, junto com o fim do Império Romano do Ocidente.

Isso abriu caminho para a arte sacra medieval e suas pinturas de passagens da Bíblia em cores fortes e vibrantes.

Foi só no final do século 15 que a Antiguidade Clássica voltou a despertar interesse. Era o início do período que ficou conhecido como Renascimento.

"O mito da escultura em mármore branco foi inventado pelo Renascimento italiano. O Renascimento queria fazer uma distinção do que havia antes da arte cristã. Eles queriam voltar à Antiguidade, à Era pré-Cristã , ter uma aparência icônica do que era feito. Então eles ressuscitaram a Antiguidade e a definiram como branca".

Naquela época, esculturas gregas e romanas foram redescobertas no antigo território do Império Romano. E os artistas renascentistas tentaram reproduzir as obras.

Peças icônicas do Renascimento, como o David de Miguelângelo, foram inspiradas nessa busca por uma referência na Antiguidade Clássica.

A famosa escultura de David, de Miguelângelo, de 1504, foi inspirada na arte antiga — Foto: Getty Images via BBC
A famosa escultura de David, de Miguelângelo, de 1504, foi inspirada na arte antiga — Foto: Getty Images via BBC

Mas a maioria dos templos e das estátuas havia perdido grande parte da cor. Afinal, cerca de dois mil anos haviam se passado desde que os originais gregos coloridos tinham sido produzidos.

E essa arte pálida e desbotada caiu como uma luva, já que o objetivo dos renascentistas era se diferenciar da arte sacra, extremamente colorida e considerada por eles vulgar do ponto de vista artístico.

Mas fica a pergunta. Será que os renascentistas que criavam ali uma estética que seria tão influente não notaram os vestígios de pigmentos de cor nas estátuas?

É bem possível que tenham visto sim, considerando análises como a de Brinkmann de que até hoje é possível ver a olho nu a cor original de algumas estátuas.

Mas não seria necessário depender apenas dos olhos. Havia referências às cores também em Platão, filósofo grego, considerado o pai da filosofia política.

Platão escreveu no século 4 antes de Cristo que os olhos de uma estátua mereciam as mais belas das cores, já que eram a parte mais bonita do corpo. Mas referências como essa podem ter sido ignoradas por vários motivos.

"A Europa não era muito educada nem muito interessada. Mas queria se livrar da opressão da Igreja. Produziram, então, um ideal", diz Vinzenz Brinkman.

Ele acresenta que, "assim, o mármore branco e o bronze escuro passam a ser usados como um símbolo de sofisticação do pensamento europeu."

Escavação reveladora - A Artemis de Pompeia

Foi finalmente em 1769, em Pompeia, ao pé do monte Vesúvio, que uma estátua preservada pela lava lançada pela erupção devastadora do vulcão no primeiro século da chamada era Cristã, trouxe à tona o que a história havia apagado: a Artemis de Pompeia, calçava sandálias e tinha seus cabelos em vermelho.

Foi uma descoberta histórica. Eram numerosos e visíveis os vestígios de cor na pele e nas roupas da estátua. As cinzas do vulcão que a cobriram em 79 d.C. tinham preservado parcialmente as cores.

O arqueólogo e historiador Johann Winckelmann, considerado um dos pais da História da Arte Clássica, viu a estátua dois anos após a descoberta e pôde constatar a existência de cor.

Muitos dizem que Winckelmann se recusou a aceitar que a estátua era grega. Para ele, a Artemis de Pompeia, era provavelmente etrusca, uma civilização mais antiga, e considerada por ele menos sofisticada do que a grega, que ele e seus contemporâneos admiravam.

Anos depois, o especialista deu o braço a torcer. Definiu Artemis como fruto do início da arte grega. Sua conclusão, no entanto, permaneceu sem ser publicada por dois séculos - até 2008. Alguns acham que a demora foi proposital.

O afresco de Pompeia mostra uma pintora pintando uma estátua, 55-79 A.D. — Foto: Getty Images via BBC
O afresco de Pompeia mostra uma pintora pintando uma estátua, 55-79 A.D. — Foto: Getty Images via BBC

E as provas não vieram apenas com Artemis. Um afresco, também descoberto em Pompeia, mostra uma mulher claramente pintando uma estátua, e com muitas cores.

A ausência de cor como símbolo de sofisticação

Em 1810, algumas décadas depois da descoberta da estátua de Artemis, o famoso poeta alemão e estudante da arte grega Johan Wolfgang Goethe, publicou o livro Teoria das Cores.

Ele escreveu: "…nações selvagens, povos primitivos e crianças sentem grande atração por cores vivas, os animais se enfurecem com certas cores, e homens sofisticados evitam cores vivas nas roupas e no ambiente que os cerca, procurando em geral delas se afastar."

Mas Goethe, que considerava a Grécia Antiga o ápice da civilização, foi rebatido pelos fatos no mesmo ano em que publicou seu livro.

Foi o ano em que o templo de Afaia, na ilha grega de Egina, foi descoberto em bom estado de conservação. As cores eram visíveis a olho nu.

O Arqueiro, por exemplo, fez parte desse templo. É óbvio que, quando a estátua foi achada, as cores não eram mais tão fortes como na versão restaurada por Brinkmann. Mas mesmo assim eram inegavelmente visíveis na época.

Ou seja, o templo de Afaia emergiu de escavações praticamente dizendo a Goethe: Você está enganado.

"Ele sabia disso, mas menosprezou. Ele está francamente declarando ser ignorante. 'Eu sei, mas não quero saber.' E isso é algo que vemos ainda hoje todos os dias. Tantas pessoas e colegas dizem 'tudo bem, você pode estar certo, mas essa não é a minha Antiguidade. Minha Antiguidade… Eles têm suas próprias Antiguidades! As Antiguidades de cada um: e Goethe tinha a sua", diz Brinkmann.

Novas escavações no século 19 mostraram claramente o uso da cor na Antiguidade. Estudos de obras antigas foram publicadas, como as do arquiteto Ernst Ziller.

Distorção do ideal estético

Portanto, é justo dizer que no fim do século 19 ficou evidente que a Antiguidade era colorida. Mas, apesar de todas essas descobertas, nosso gosto continuou sendo moldado por uma estética sem cores quando se pensa na Grécia Antiga.

"Os museus e os especialistas não informaram o público sobre cores e ornamentos nas estátuas, uma vez que cores e ornamentos estavam em certo ponto limitados a culturas não europeias, sem seriedade, folclóricas", afirma Brinkmann.

Ainda assim, a desvalorização da cor prosseguiu. Basta dizer que em 1938, o Museu Britânico de Londres aplicou um intenso polimento numa peça de mármore retirado da Acrópole, de Atenas, até que ficasse branca e brilhante.

Fico pensando o que meus antepassados achariam disso. Em sua versão original, a Acrópole era uma festa de cor.

Segundo Brinkmann, nosso ideal estético foi distorcido mais do que nunca no século 20, e por motivos políticos.

Ele cita o arquiteto austríaco Adolf Loos, um influente teórico da arquitetura moderna que chegou a comparar o uso da cor a um crime.

"O arquiteto Adolf Loos, que é altamente ideológico, afirma que cor e ornamento são crimes de uma maneira muito grosseira e louca. É um absurdo"

Loos chegou ao ponto de associar um senso de "imoralidade" ao ornamento, descrevendo-o como "degenerado". Na opinião de Loos é necessário suprimir a cor e a ornamentação para que uma sociedade seja definida como moderna.

"Olhando para o início do século 20, conseguimos entender como essa nova postura radical de estética foi desenvolvida, passo a passo. O fascismo europeu contribuiu muito com isso, por meio de uma forte relutância em aceitar formas detalhadas, ornamentos, e o uso de cores diferentes.", afirma Brinkmann.

Ele explica que uma figura colorida reflete melhor as emoções individuais. Já, sobre uma única cor, com frequência o branco, é possível projetar qualquer ideologia.

Assim como para Loos e até mesmo Goethe, para os nazistas a inexistência de cor refletia um homem mais moderno, sofisticado e superior. E isso foi usado para justificar suas ideologias mortais.

Mark Abbe, da Universidade da Geórgia (Estados Unidos), descreve: "esses trabalhos foram encarados como exemplos artísticos para modelos universais e eternos de beleza e caráter ético para a atual era. E isso continua: ainda erguemos estátuas de mármore, todas brancas, para prestar as mais elevadas honras na sociedade contemporânea".

A exposição Deuses em Cor já foi exibida na Grécia. No berço dessa arte, a recepção foi mista como em outras partes do mundo.

Mas, segundo a arqueóloga Hariclia Brekoulaki, ela serviu para desenterrar também o interesse dos gregos por seu próprio passado. Um passado colorido.

"Teve uma repercussão importante. Algo como o que Vinzenz construiu com sua equipe na Alemanha infelizmente não existe na Grécia. Ainda. Espero, que com o passar do tempo, tenhamos mais iniciativas como essa. Inclusive nos museus que as obras se encontram. A ideia de que a cor é importante e de que precisamos estudá-la entrou na cabeça dos diretores de museus, e dos pesquisadores", reflete Brekoulaki.

'Devemos continuar a procurar outros mal-entendidos'

Brinkmann celebra a recolorização da antiguidade grega.

"No primeiro olhar, há um choque porque entra em conflito com suas expectativas. E no começo você pensa que as cores são fortes demais. E aí você volta e olha novamente, e essa impressão começa a se desfazer. Tem gente que entra em nossa exposição com uma postura de que esse é um modelo intelectual. E a ideia é descartada. Mas outras pessoas começam a pensar. Saem da exposição e percebem o grande mal-entendido, então devemos continuar a procurar outros mal-entendidos. E isso é lindo".

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Cientistas investigam como a espiritualidade pode ajudar a saúde do corpo

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Práticas espirituais - e não necessariamente religiosas - que trazem bem-estar, como meditação, passes, oração, perdão, atos de gratidão e fé, podem, em alguns casos, ser aliadas de pacientes; universidades já têm centros de pesquisa para estudar o tema.
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TOPO
Por Daniele Madureira, BBC

Postado em 09 de maio de 2021 às 18h00m


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No Brasil, instituições respeitadas têm se dedicado a estudar o quanto a espiritualidade do paciente auxilia na cura de doenças físicas e psíquicas — Foto: GETTY IMAGES via BBC
No Brasil, instituições respeitadas têm se dedicado a estudar o quanto a espiritualidade do paciente auxilia na cura de doenças físicas e psíquicas — Foto: GETTY IMAGES via BBC

Raiva, rancor, orgulho, medo, egoísmo. Sentimentos comuns a todos os seres humanos podem estar no cerne de boa parte das doenças enfrentadas pela humanidade, segundo a própria medicina. Várias instituições no Brasil e no mundo vêm se dedicando a estudar até que ponto a saúde do indivíduo é influenciada, literalmente, pelo seu estado de espírito.

No país, a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), o Instituto de Psiquiatria (IPq) da USP, por meio do Programa de Saúde, Espiritualidade e Religiosidade (Proser), e a Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), com o Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde (Nupes), têm investigado o quanto a espiritualidade (não necessariamente a religiosidade) do paciente auxilia na cura de doenças físicas e psíquicas - que podem ser agravadas a partir de sentimentos ruins e pensamentos destrutivos.

Nos Estados Unidos, grandes instituições de ensino como a Escola de Medicina de Stanford, as Universidades Duke, a da Flórida, a do Texas e Columbia mantêm centros de estudos exclusivos sobre o assunto, assim como a Universidade de Munique, na Alemanha, a de Calgary, no Canadá, e o Royal College of Psychiatrists, no Reino Unido.

Para os centros de pesquisa, há um conjunto de evidências que indicam que diversas expressões da espiritualidade têm impacto significativo na saúde e no bem-estar, associadas a menores níveis de mortalidade, depressão, suicídio, uso de drogas, ou mesmo internações e medicamentos.

As instituições ressaltam que espiritualidade é diferente de religião: em tese, uma pessoa religiosa é espiritualizada; mas alguém espiritualizado não necessariamente segue uma religião - e pode até não acreditar em Deus. A espiritualidade estaria ligada à busca pessoal de um propósito de vida e de uma transcendência, envolvendo também as relações com a família, a sociedade e o ambiente.

Perdão e gratidão no controle da pressão arterial

"A espiritualidade é um estado mental e emocional que norteia atitudes, pensamentos, ações e reações nas circunstâncias da vida de relacionamento, sendo passível de observação e mensuração científica", diz o médico Álvaro Avezum Júnior, presidente da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp), professor do centro de cardiopneumologia da USP e do programa de doutorado do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia.

Segundo ele, a espiritualidade é expressa através de crenças, valores, tradições e práticas. "Quem tem menos disposição ao perdão está mais disponível a enfrentar enfermidades coronárias", diz o especialista, que também é diretor do Centro Internacional de Pesquisa do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo. Da mesma maneira, diz, a raiva acumulada pode levar à diabetes.

Avezum é um dos principais estudiosos do país da relação entre espiritualidade e saúde. Esteve à frente da iniciativa da SBC em publicar, há dois anos, as Diretrizes Brasileiras Sobre Espiritualidade e Fatores Psicossociais, que integram o conjunto de prevenção cardiovascular. "A SBC foi a primeira sociedade de cardiologia do mundo a associar enfermidade moral a doença cardíaca, a partir de evidências científicas", diz.

Segundo ele, com intervenções baseadas em perdão e gratidão é possível controlar, por exemplo, a pressão arterial. "Mas não um perdão condicional, que mantém o ressentimento, e sim um perdão emocional, que muda o que se sente em relação ao agressor", afirma.
Relação entre profissionais da saúde e pacientes deve ser guiada pela empatia — Foto: Getty Images via BBC
Relação entre profissionais da saúde e pacientes deve ser guiada pela empatia — Foto: Getty Images via BBC

Agora seus estudos buscam ir além e entender a origem da doença.

"Queremos mostrar que é possível prevenir a doença tratando a espiritualidade primeiro, por meio do perdão e da gratidão, além de reforçar outras atitudes positivas como solidariedade, compaixão, humildade, paciência, confiança e otimismo", diz ele, que não se importa com eventuais céticos no meio científico. "Se alguém diz que isto não é ciência está sendo dogmático, porque escolhe o que investigar".

Até 2019, antes da pandemia do novo coronavírus, as doenças cardíacas eram a principal causa de morte entre adultos no Brasil. Foram 116.766 óbitos em 2019 relacionados aos males do coração, informa o Ministério da Saúde. Segundo Avezum, já existem artigos e estudos sobre espiritualidade e Covid-19 no mundo (eram 110 até o último dia 25 de abril, segundo registros do buscador PubMed, da National Library of Medicine, dos Estados Unidos). Mas os resultados ainda são inconclusivos, diz.

"Para combater o coronavírus, o melhor é não se expor e se valer da religiosidade e da fé para enfrentar os desafios do isolamento social", afirma.

"Vou morrer, doutor?"

O interesse de Avezum no tema começou com o trabalho da médica americana Christina Puchalski que, desde 1996, procura inserir o componente espiritual no cuidado com os pacientes. Christina dirige o Instituto George Washington para Espiritualidade e Saúde (GWish), da Universidade George Washington.

Ela defende que os médicos levantem o histórico espiritual do paciente para entendê-lo de forma integral. O objetivo é identificar as crenças e valores que realmente importam ao indivíduo, e como isso atua na forma como ele lida com a doença.

"Se o paciente acredita que a meditação o acalma, o médico deve ter essa informação em mãos e recomendar que ele mantenha a prática, ao mesmo tempo em que toma a medicação", diz o médico Frederico Leão, coordenador do Proser do IPq. "É preciso adotar a prática espiritual que esteja em harmonia com as crenças de cada um, porque isso vai contribuir para o tratamento".

Pesquisar o impacto dessas práticas na saúde mental dos pacientes é o foco do IPq, que também promove cursos sobre como o abordar o tema nos consultórios.

Segundo Leão, até o início dos anos 2000, os médicos tinham muito receio em falar sobre o assunto, mesmo sendo o Brasil um país onde mais de 80% da população se declara cristã. "Muitos não sabiam - e talvez ainda não saibam - como fazer essa abordagem", diz ele. "É o caso do cirurgião que, antes da cirurgia, pede para rezar um Pai Nosso com toda a equipe e o paciente questiona: 'Por que isso, doutor, vou morrer?'".

Leão destaca as pesquisas do psiquiatra americano Harold Koenig, da Universidade Duke, para quem negligenciar a dimensão espiritual do paciente é como ignorar o seu aspecto social ou psicológico, ou seja, ele não é tratado de forma integral.

"Koenig constatou que o pensamento positivo, a meditação e a oração não afetam só a mente, mas o organismo como um todo", afirma Leão, para quem essas práticas se tornam ainda mais essenciais em tempos de pandemia do novo coronavírus. "Só os muito alienados não estão revendo seu padrão de vida neste momento".

Pânico e ressentimento

Helma Gonçalves do Nascimento Martins acordou se sentindo estranha naquela sexta-feira, 8 de janeiro. Aos 48 anos, a fisioterapeuta achou que a dor e o cansaço eram resultado do treino cardiovascular feito na véspera. Mas os sintomas do novo coronavírus vieram com força.

"Tive febre, dor no corpo, perda de olfato, era um sintoma novo a cada quatro horas", diz. "Me faltava ar até para tomar um copo d'água". Com o marido e a filha caçula em casa, ela se isolou no quarto da criança. E aí teve início o pior dos sintomas: o pânico.
A espiritualidade vai muito além da religião e envolve nosso estado mental e emocional — Foto: Getty Images via BBC
A espiritualidade vai muito além da religião e envolve nosso estado mental e emocional — Foto: Getty Images via BBC

"A ansiedade bateu muito forte, era o medo da morte a todo instante, não conseguia pensar em outra coisa, achava que eu não ia aguentar", diz ela, que foi monitorada pelo seu médico durante os 14 dias de tratamento. "Ele me dizia: 'Estou 100% com você, a gente vai vencer este vírus', e eu procurava acreditar. É uma doença em que você sente a morte ao seu lado e precisa estar sozinha".

O pior da Covid-19 passou nos primeiros dez dias. Mas os sintomas continuaram por mais de um mês. "Eu sentia uma fraqueza muscular imensa, tontura", diz.

O tratamento com remédios foi encerrado e Helma começou a ser atendida pela tia do marido, uma terapeuta holística. Ela lhe aplicava massagens e passes de reiki. "Aquilo fortaleceu o meu espírito. Comecei a me sentir bem melhor e um mês depois já voltei a trabalhar o dia todo", afirma. Evangélica, ela acredita que a espiritualidade a ajudou na recuperação. "Você quer lutar, quer sobreviver e vem uma força, que você não sabe bem de onde, e te ajuda a buscar a luz em meio ao pânico, a superar os sentimentos ruins".

Para ela, suas doenças foram agravadas pelo seu estado emocional. "Três meses antes do coronavírus, em outubro, sofri uma angina, um pré-infarto. Enfrentava uma crise conjugal e não conseguia perdoar. Depois, passei a ficar desesperada em relação ao futuro, ao trabalho, por conta da pandemia. A falta de perdão e de fé me abalaram demais".

O psicólogo Laerson Cândido de Oliveira ressalta o valor do amor, da oração, da positividade e da fé no futuro. "Costumamos ter muita solidariedade em relação a quem está distante de nós, a quem não conhecemos, mas somos incapazes de perdoar as menores faltas cometidas por pessoas do nosso convívio", diz ele, que dirige o Instituto Espírita Cidadão do Mundo (IECIM), em São Paulo.

Segundo ele, o ódio e o ressentimento aprisionam o indivíduo, levando-o a um estado doentio, enquanto o medo e o egoísmo paralisam impulsos positivos, no sentido de auxílio ao próximo.

Contra o negacionismo

As práticas de massagem (ayurveda) e reiki, usadas por Helma no tratamento das sequelas da Covid-19, integram a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPICs), adotada em 2006 pelo Ministério da Saúde. Hoje, a PNPICs engloba 29 recursos terapêuticos - muitos baseados em conhecimentos tradicionais como acupuntura, ioga, meditação, fitoterapia, homeopatia e quiropraxia, e outros mais recentes, como ozonioterapia e biodança. Atualmente, são oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em 54% dos municípios do país.

A adoção da PNPICs segue orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) que, em 1988, incluiu a dimensão espiritual no conceito de saúde multidimensional. Para a organização, espiritualidade é "o conjunto de todas as emoções e convicções de natureza não material, com a suposição de que há mais no viver do que pode ser percebido ou plenamente compreendido, remetendo a questões como o significado e sentido da vida, não se limitando a qualquer tipo específico de crença ou prática religiosa".

"A PNPICs pode fazer a grande diferença para a saúde da população, ao valorizar o conhecimento tradicional, as culturas regionais, amparada no aculturamento espiritualista, sobretudo a um baixo custo", diz o neurocientista Sérgio Felipe de Oliveira. "É a possibilidade de diálogo com a população", prossegue ele, para quem o diálogo entre ciência e espiritualidade nunca foi tão urgente.

"A ciência não pode se fechar em cima de si mesma, em um conhecimento hermético. Ela precisa ouvir e conversar com a população. Senão, quando nós precisamos da ciência, o povo não ouve. Aí surgem o negacionismo e as fake news", diz ele, que entre 2007 e 2014 ministrou a disciplina optativa Medicina e Espiritualidade na Faculdade de Medicina na USP.

Para Sergio Felipe, é fundamental que o médico crie uma relação de empatia com o paciente. "Tanto o povo brasileiro quanto o americano são religiosos, acreditam na força da oração e na proteção de Deus. O médico precisa valorizar a dimensão espiritual do paciente para integrá-la ao tratamento", afirma.

É neste sentido, por exemplo, que o médico deve explicar que o paciente não pode estar estressado quando for tomar o medicamento, porque a adrenalina vai atrapalhar a sua eficácia.

"O estado de espírito do indivíduo interfere na farmacocinética, ou seja, na absorção e distribuição do remédio no organismo", diz. "Se a oração e a fé do paciente podem acalmá-lo, isso será importante para que a medicação surta efeito".

Risadas no centro cirúrgico

Na cabeça do médico, fazer a junção entre o material e o espiritual não é tão simples. "Somos treinados a observar a dimensão física do paciente e, para a maioria, é difícil aliar este conhecimento técnico com a espiritualidade", afirma a médica pediatra Carolina Camargo Vince.

"É preciso ser cuidadoso na abordagem, para que o paciente não pense que a cura dele depende de um milagre", diz ela, que integra a equipe de oncologia pediátrica do Hospital Israelita Albert Einstein e do Instituto do Tratamento do Câncer Infantil do Hospital das Clínicas de São Paulo.

No dia a dia, Carolina costuma estender os cuidados à família da criança. "O diagnóstico de câncer afeta a saúde mental e emocional não só do paciente, mas das famílias, especialmente quando se trata de uma criança", diz ela.

É comum em um primeiro momento haver um sentimento de revolta por parte dos pais, que se perguntam por que isso acontece com o filho deles, ou por que não foram eles o alvo da doença, no lugar das crianças, afirma.

"O câncer te coloca frente a frente com a questão da espiritualidade, é um momento de reflexão existencial", diz Carolina, para quem as crianças, em geral, desenvolvem sua espiritualidade de maneira plena.

"Não passa pela cabeça delas desistir ou desesperar, elas vão procurar mecanismos dentro delas mesmas para se adaptar a um novo momento de vida, que envolve muitos remédios, picadas, desconfortos e às vezes longos períodos de internação".

Paciente de Carolina, Cora Grigio foi diagnosticada com leucemia quando tinha cinco anos e meio. "Para mim, até então, essa doença era sinônimo de morte", conta Patrícia Ferreira Silvério, mãe de Cora, que viu a filha encarar a situação com leveza.

"A Dra. Carol explicou para ela o que estava acontecendo de maneira didática e delicada", lembra. "E durante todo o tratamento, que durou dois anos e dois meses, minha filha só chorou uma vez". Espirituosa e alegre, Cora sempre gostou de se enfeitar para ir ao hospital, onde brincava com quem estivesse perto.

"Deitada na maca, ela ia rindo com as médicas para o centro cirúrgico", lembra Patrícia, que hoje alimenta o Instagram da filha, uma modelo de 8 anos. "Ela começou a fazer campanhas quando ainda estava carequinha, tamanha a autoestima".

Mas para a mãe o processo nunca foi tranquilo. "Um dia, depois das primeiras sessões de quimioterapia, levei um susto quando um tufo de cabelo dela saiu na escova. Cora percebeu e começou a cantar para me alegrar", diz Patrícia. "Não aguentei e chamei meu marido, precisava chorar um pouco".

Para Patrícia, a doença da única filha foi capaz de lhe mostrar que ela não está no controle de tudo. "Eu sempre fui a que tomava a frente das coisas, a que resolvia tudo. Mas me deparei com algo que eu não conseguia resolver. Eu tinha que buscar paz para passar pelo sofrimento", diz ela, uma católica que se aproximou do espiritismo na época do tratamento de Cora.
A forma como o paciente e sua família lidam com a doença pode fazer diferença no resultado final do tratamento e na recuperação — Foto: Getty Images via BBC
A forma como o paciente e sua família lidam com a doença pode fazer diferença no resultado final do tratamento e na recuperação — Foto: Getty Images via BBC

Mentes perturbadas

A pediatra intensivista Cíntia Tavares Cruz sempre quis tratar do tema espiritualidade com as famílias, mas não sabia como abordar. Ao longo do seu curso de medicina na Universidade de Campinas (Unicamp), o mais perto que ela chegou do assunto foi quando aprendeu sobre ética e humanização.

"O paciente que chega à UTI está em colapso do corpo físico. Existe alto grau de incerteza, tudo sai do falso controle. Depois de resgatá-lo, é preciso tratar de questões que o levaram até ali e vão além do físico", diz ela, que só ouviu falar sobre espiritualidade quando se especializou em medicina paliativa.

Voltada a doentes crônicos, a especialidade busca proporcionar ao paciente e sua família uma qualidade de vida integral, envolvendo físico, social, emocional e espiritual. "Neste sentido, as práticas integrativas fazem toda a diferença".

Na opinião da fisioterapeuta Juliana Faria do Nascimento, as PNPICs contribuem para o equilíbrio energético e permitem melhorar a imunidade do indivíduo. "Por isso, o Conselho Nacional de Saúde pediu que este tipo de tratamento não fosse interrompido durante a pandemia", diz ela, que trabalha em Adamantina (SP) e tem entre os seus pacientes diabéticos, hipertensos e portadores de doenças cardiovasculares que viram aumentar seu grau de ansiedade e estresse durante o confinamento. "Uma mente perturbada não consegue evoluir na parte física", afirma.

Cíntia Cruz concorda. "A adoção de práticas integrativas ajuda a desbloquear a espiritualidade do paciente. Isso não vai acabar com o seu sofrimento, mas vai ajudá-lo a lidar melhor com este momento difícil, ao sair da inércia e da vitimização", diz a pediatra, que trabalha como intensivista no Hospital Infantil Sabará, em São Paulo, e como paliativista no Hospital das Clínicas.

Foi o que aconteceu com o pequeno Kaleb, de 10 anos. Vítima de sarcoma histiocítico, um tipo raro e agressivo de câncer, que se disseminou por todo o corpo, ele passou a ter contato no hospital com a meditação para controlar a dor. "Por vezes eu estava no quarto conversando com a médica e ele pedia silêncio para meditar", lembra a mãe de Kaleb, Fernanda Hochstedler.

"Deus não se esqueceu da gente"

Foi a segunda vez que Kaleb teve câncer. Na primeira, quando ele ainda tinha 8 anos, foi diagnosticado com leucemia. Se incomodou com a perda de cabelo, mas respondeu bem ao tratamento ao longo do primeiro ano. Um dia, porém, começou a sofrer com febres altas e persistentes. Uma investigação profunda levou ao diagnóstico de sarcoma.

"Foi muito difícil dizer a ele que surgiu um novo câncer e que ele precisava passar por um transplante de medula", diz Fernanda. "Dissemos a ele que não sabíamos o final da história, mas que ele jamais estaria sozinho e que Deus não se esqueceu da gente", diz ela que, com o marido e outros quatro filhos, segue a Igreja Internacional do Calvário, de origem canadense.

O transplante foi feito em novembro de 2019. As sessões intensas de quimioterapia levaram a uma reação no pulmão e ele voltou a ser internado em 3 de março do ano passado. "Quando surgiu a pandemia, fiquei o tempo todo com ele no hospital, passei quase um mês sem ver meus outros filhos", diz Fernanda. Para suprir em parte a falta dos irmãos, a quem Kaleb sempre foi apegado, a mãe sugeriu que eles fizessem novos amigos no hospital - alguns mantidos até hoje.

"Quando você foca na vida da outra pessoa, você cria empatia e transforma a sua própria perspectiva", diz ela. "Isso nos ajudou a lidar com as emoções e a não nos entregarmos ao desespero".

O momento de dor profunda, porém, chegou. Kaleb precisou ser entubado em abril e, em 12 de maio de 2020, faleceu. Dois dias antes, sem perspectiva de melhoras, Fernanda e o marido questionaram se os irmãos queriam se despedir de Kaleb. Todos concordaram. O garoto permanecia sedado, mas os irmãos conversaram com ele.

"O meu caçula disse: 'Vá para casa, Kaleb. Nós vamos mais tarde'", lembra Fernanda, que chegou a colocar o filho já morto no colo. "Deixá-lo ir, depois de tanto sofrimento, trouxe muita paz", diz ela, para quem Deus se tornou muito mais real depois de toda a experiência. "É claro que houve dor e desespero, mas a fé nos permitiu não permanecer lá e voltarmos a viver".

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