Chefe de organização internacional que identifica os mortos por meio de DNA e alerta contra pessoas que tentam reescrever a história.
Por Deutsche Welle
11/07/2020 10h22 Atualizado há 1 horas
Postado em 11 de julho de 2020 às 11h35m
Uma catástrofe começou em 11 de julho de 1995 para os moradores de
Srebrenica: soldados sérvios da Bósnia, sob o comando de Ratko Mladic,
marcharam para a cidade e mataram cerca de 8 mil homens e meninos nos
dias seguintes. Este foi o maior crime de guerra na Europa desde o final
da Segunda Guerra Mundial.
Kathryne Bomberger lidera desde 2004 a Comissão Internacional de
Pessoas Desaparecidas (ICMP). A organização, sediada em Haia, na
Holanda, utiliza análises de DNA desde 1999 para identificar as vítimas
do massacre.
Comandante condenado na Bósnia toma veneno em tribunal
Em entrevista para a DW, ela afirma que muitos tentam reescrever a
história do genocídio e que os fatos são esvaziados e distorcidos para
fins políticos. "Srebrenica pode acontecer em qualquer lugar e é um
lembrete de que todos nós somos capazes, independentemente do paíse de
onde viemos", frisa.
DW: Vinte e cinco anos após o massacre de Srebrenica, há cada vez mais
vozes – incluindo a do vencedor do Prêmio Nobel Peter Handke – que
afirmam que os crimes na Guerra da Bósnia não podem ser chamados de
genocídio. O que você pensa quando ouve tais afirmações?
Kathryne Bomberger: Acho absolutamente ultrajante que isso esteja sendo
questionado. Especialmente no que se diz respeito aos desaparecidos de
Srebrenica, esse é o genocídio mais bem documentado da história. Dizer
que isso nunca aconteceu para criar uma contranarrativa é preocupante,
porque os fatos estão muito bem documentados. Estão bem documentados por
escavações e não só pela Comissão Internacional para as Pessoas
Desaparecidas, mas também pelo Tribunal Penal Internacional para a
ex-Iugoslávia e pelas autoridades judiciárias nacionais. Eles estavam
presentes em todos os locais de escavações.
O que foi documentado?
Houve uma tentativa de exterminar uma população inteira através da
limpeza étnica – por outras palavras, um genocídio. Esse é o único caso
de genocídio reconhecido como tal em solo europeu desde o fim da Segunda
Guerra Mundial. É por isso que, após a guerra, foram feitos esforços
para expor esses crimes e garantir que os responsáveis fossem levados à
justiça. Era importante que o Estado encontrasse todas as pessoas
desaparecidas – independentemente da sua origem étnica, religiosa ou
nacionalidade – e, no nosso caso, utilizando o DNA, fossem identificadas
com precisão para que as famílias possam enterrar seus mortos e as
vítimas possam obter justiça. Esse foi o caminho que tomamos, mas ainda
não acabou.
O julgamento ainda não terminou?
Nós ajudamos os Estados da região a escavar mais de 3 mil valas comuns e
a identificar a grande maioria das vítimas. Quanto à Srebrenica,
identificamos mais de 90% dos cerca de 8 mil homens e meninos que
desapareceram. No entanto, nem todos esses casos chegaram ainda aos
tribunais: ao Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia ou aos
tribunais nacionais da Bósnia-Herzegovina. Mas o ICMP documentou provas
de crimes de guerra nesses locais, e a utilização de DNA para
identificar as vítimas possibilitou a disponibilização de todas essas
provas para a aplicação da lei. E isso deve continuar.
Apesar de todas essas evidências, por que sempre há uma tentativa de reescrever a história?
Nós vivemos em uma sociedade pós-factual. Os fatos são esvaziados e
distorcidos para fins políticos. Numa época de populismo crescente, a
criação de tais contra-narrativas, historiografia falsa e narrativas
enganosas se tornou normal – e eu acho isso muito perturbador. O que
está sendo feito aqui com os fatos no contexto das Guerras dos Bálcãs e
Srebrenica é, portanto, um reflexo do que está acontecendo no resto da
Europa. E não é apenas na Europa: em muitas partes do mundo, o medo do
outro é utilizado como meio de fomentar o ódio.
Você se refere aos políticos?
Pode-se governar um país de tal forma que a tolerância, a coesão social
e o respeito mútuo sejam possíveis, ou pode-se fomentar o ódio e semear
a desconfiança. O que aconteceu na ex-Iugoslávia é um atestado dos
ciclos de violência na Europa. As feridas abertas da Segunda Guerra
Mundial foram abusadas aqui para despertar o ódio em vez de aproximar as
pessoas. O abuso de tais feridas abertas, que existem em todas as
sociedades, é a pior forma possível de gerir um país. Por outro lado, a
Nova Zelândia, onde a primeira-ministra conseguiu unir as pessoas após o
ataque a duas mesquitas em Christchurch, em 2019, é um exemplo de boa
liderança e de restabelecimento da coesão social após um acontecimento
muito traumático.
Qual
é a importância da educação para atingir esse objetivo? Ainda existem
escolas na Bósnia que ensinam que nunca houve um genocídio.
Eles ensinam mentiras às crianças. Penso que temos que ensinar a
verdade às crianças e ensiná-las a respeitar e amar uma às outras, e
isso é possível. Mas se a ensinamos mentiras e a odiar todos os dias,
elas vão odiar [o próximo]. Para mim, essa é a base de tudo. E penso que
é um triste reflexo da sociedade bósnia o fato de temos escolas
separadas por etnias e que ensinam o oposto nas aulas de História. E
isso não ocorre só na Bósnia: o problema é ensinar o ódio.
É essa a mensagem de Srebrenica para nós em 2020?
De forma clara e simples, a mensagem é: Srebrenica pode acontecer em
qualquer lugar. Se não tivermos cuidado, haverá consequências
devastadoras se nos envolvermos nesse tipo de ódio contra os outros.
Srebrenica é um lembrete de que todos nós somos capazes,
independentemente do país de onde viemos. Esse tipo de ódio pode acabar
muito, muito mal. Eu tenho medo, porque penso que algo assim pode
acontecer de novo.
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