Relatos registrados ao longo da história do Brasil apontam para o uso proposital de doenças como armas biológicas.
Por BBC
20/07/2020 09h56 Atualizado há 2 horas
Postado em 20 de julho de 2020 às 12h00m

Relatos registrados ao longo da história do Brasil apontam para o uso 
proposital de doenças como armas biológicas — Foto: Biblioteca 
Nacional/via BBC
 Um avião sobrevoa os campos e despeja dos céus brinquedos infectados 
pela gripe. Criadores de gado atraem uma tribo desavisada a um povoado 
que enfrenta uma grave epidemia. Fazendeiros largam estrategicamente 
pelo chão mudas de roupa contaminadas com varíola. 
 São esses alguns dos relatos registrados ao longo da história do Brasil
 que apontam para o uso proposital de doenças como armas biológicas em 
batalhas contra povos indígenas e que teriam contribuído para dizimar 
grande parte das tribos que existiam originalmente no país. 
 Ao descrever a investida de plantadores de cacau sobre as terras reservadas às tribos kamakã e pataxó, na Bahia
 do início do século 20, o antropólogo Darcy Ribeiro conta no livro Os 
índios e a civilização que os invasores lançavam mão de "velhas técnicas
 coloniais, como o "envenenamento das aguadas" e "o abandono de roupas e
 utensílios de variolosos onde pudessem ser tomados pelos índios". 
 Para Rafael Pacheco, pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios da USP
 (Cesta), o uso de objetos contaminados foi o principal método usado 
para inocular doenças entre os indígenas desde o início da colonização. 
"Além da similaridade de métodos, o conflito de terras era a motivação mais comum para esses episódios", explica.
 O impacto devastador de doenças trazidas pelos europeus ao Brasil entre
 os índios é largamente conhecido. Além da baixa imunidade, os hábitos 
coletivos e a falta de tratamentos tornavam a população nativa 
especialmente vulnerável a doenças trazidas por estrangeiros, como conta
 o professor de antropologia da Universidade Estadual de Santa Cruz Carlos José Santos. 
"Povos inteiros foram massacrados pelos contágios de doenças infecciosas. Aliás, muitos foram considerados extintos por elas, como é o caso dos goitacá", diz Santos, que é indígena e conhecido pelo nome Casé Angatu.
 Doenças como varíola, sarampo, febre amarela ou mesmo a gripe estão 
entre as razões para o declínio das populações indígenas no território 
nacional, passando de 3 milhões de índios em 1500, segundo estimativa da
 Funai (Fundação Nacional do Índio), para cerca de 750 mil hoje, de acordo com dados do governo. 
 As causas dessas epidemias são comumente tratadas pela história como 
involuntárias. Há, no entanto, diversos relatos de infecção proposital 
de tribos indígenas no país: entre os timbira, no Maranhão, os 
botocudos, na região do vale do Rio Doce, os tupinambá e pataxó, na 
Bahia, os cinta-larga, em Mato Grosso e Roraima, entre vários outros. 
 Segundo a antropóloga Helena Palmquist, que pesquisa genocídio indígena
 no Brasil, o método de infecção era comum. "É uma estratégia muito 
difícil de provar, e os casos aconteciam em rincões, no Brasil profundo,
 lugares em que ninguém queria entrar." 
 "Essas histórias não são desconhecidas, só não são levadas a sério. Os 
casos não foram apurados e nenhuma medida foi tomada, esses episódios 
eram divulgados pelos órgãos oficiais como fatalidades", afirma Pacheco.
O massacre dos timbira
Doenças como varíola, sarampo, febre amarela ou mesmo a gripe estão 
entre as razões para o declínio das populações indígenas no território 
nacional — Foto: Biblioteca Nacional/via BBC
 O caso mais bem documentado aconteceu com índios timbira no estado do Maranhão,
 por volta de 1816. Na região, eles travaram, ao longo de décadas, uma 
guerra violenta contra criadores de gado, que vinham invadindo suas 
terras desde o início do século 19. 
 Em meio às constantes escaramuças, era comum que tribos selassem a paz 
com povoados brancos em busca de uma aliança contra povos inimigos. Foi o
 que aconteceu com os canela, ou kapiekrã, que, inicialmente derrotados 
em batalha pelos sakamekrã, acabaram por vencê-los com a ajuda de 
aliados brancos. 
 Em determinado ponto, a proximidade desses índios com os ditos 
civilizados foi tão grande que a tribo largou as terras onde vivia para 
morar junto a eles. Os brancos, por sua vez, esperavam receber uma ajuda
 financeira do governo para sustentar os novos agregados. 
 Esse auxílio, porém, nunca veio, fazendo com que os índios famintos se 
dispersassem e entrassem em conflito com o povoado. De um lado, a tribo 
buscava formas de sobreviver. Do outro, os fazendeiros se negavam a 
dividir seus parcos recursos, acusando os índios de roubar plantações e 
atacar o gado. 
 "Perpetraram sobre os habitantes de todo o distrito enormíssimas 
extorsões, furtando-lhe gado, matando os bezerros e devorando as roças 
de mantimentos com tão decisiva destruição que, exasperados, muitos dos 
referidos habitantes largaram as suas propriedades e fugiram da 
capitania", narra em relatório para a corte o capitão Francisco de Paula
 Ribeiro, que presenciou o conflito. 
14 de maio: membros da comunidade indígena Parque das Tribos choram ao 
lado do caixão do chefe Messias, que morreu vítima da Covid-19 em 
Manaus. — Foto: Michael Dantas/AFP
 Para dar cabo da ameaça indígena, os proprietários locais, sob o falso 
pretexto de uma guerra contra outra tribo, teriam atraído os canela à 
vila de Caxias, que na época sofria com uma epidemia de varíola. 
 Ali chegando, os índios nada receberam para comer e, ao tentarem saciar
 a fome nas plantações locais, foram imediatamente punidos. "Foram 
presos e espancados, inclusive mulheres e crianças, e dentre elas, a 
esposa do principal chefe da tribo, que, ao reclamar contra este 
tratamento, foi também fustigado", conta Darcy Ribeiro. 
 Caçados a tiros de espingarda, os que conseguiram escapar levaram 
consigo a doença. Assim, a varíola se espalhou entre as tribos da 
região, como conta Francisco de Paula. Até o ano seguinte, alcançaria 
populações indígenas a uma distância de 1,8 mil quilômetros dali. 
 Segundo o capitão, a falta de tratamento ou conhecimento dos índios sobre a doença ajudou a multiplicar a mortes. 
 "Não será fácil de fazer uma ideia segura de quantas mil almas nele 
terão perecido, uma vez que se sabe o extravagante método porque estes 
homens brutais haviam pretendido curar-se — que era deitando-se aos rios
 para refrescar-se.... ou tirando-se logo as vidas àqueles que apareciam
 com mais claros sintomas de semelhante moléstia", descreve. 
 As doenças e a miséria causada pela tomada de seu território reduziu 
tanto o números dos timbira, de acordo com Darcy Ribeiro, que estes se 
viram impossibilitados de lutar até mesmo pelas áreas reservadas a eles 
pelo governo após a pacificação da região. 
 "À custa de tramoias, de ameaças e de chacinas, os criadores de gado 
espoliaram a maioria deles e os remanescentes de vários grupos se viram 
obrigados a juntar-se nas terras que lhes restavam, insuficientes para o
 provimento da subsistência à base da caça, da coleta e da agricultura 
supletiva", diz Ribeiro.
Outros relatos
 Feito em 1967 e só divulgado ao público 45 anos depois, o Relatório 
Figueiredo, produzido pelo procurador Jader Figueiredo a pedido do 
governo militar, relata o uso de vários tipos de violência contra os 
indígenas por membros do órgão que deveria resguardá-los, o Serviço de 
Proteção ao Índio (SPI). 
 Entre os assassinatos, abusos sexuais, casos de tortura e corrupção 
denunciados, o relatório ressalta as acusações de que uma tribo de 
índios pataxó do sul da Bahia teria sido levada à extinção por uma 
infecção proposital. 
"Jamais foram apuradas as denúncias de que foi inoculado o vírus da varíola nos infelizes indígenas para que se pudessem distribuir suas terras entre figurões do governo", aponta o documento.
 Em seu vasto relatório de 2014, a Comissão Nacional da Verdade 
identificou entre as causas para a morte de cinco mil índios cinta-larga
 em Mato Grosso e Rondônia,
 a partir da década de 1950, "aviões que atiravam brinquedos 
contaminados com vírus da gripe, sarampo e varíola", enviados por 
seringalistas, mineradores, madeireiros e garimpeiros, com a conivência 
do governo federal. 
 O pesquisador Rafael Pacheco cita também casos ocorridos nas últimas décadas no Paraná e Mato Grosso do Sul,
 em que proprietários de terra fizeram chover agrotóxico de um avião 
sobre as águas, terras e plantações de tribos avá-guarani, guarani e 
kayowa, causando sérios danos à saúde dos índios. 
 De suas andanças pelo Brasil entre os anos de 1816 e 1822, o 
naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire conta uma história ocorrida
 no vale do Rio Doce, onde um foragido da Justiça, acolhido de forma 
amigável pelos índios botocudos, teria dado a eles objetos infectados de
 varíola depois que um chefe indígena se apaixonou por sua filha. 
 "Muitos botocudos caíram vítimas dessa horrível perfídia", narra 
Saint-Hilaire, acrescentando que a prática era usual em outras regiões 
do país.
Transmissão não proposital e omissão
 Para o antropólogo Casé Angatu, as doenças serviram desde o início aos interesses dos colonizadores. 
"As contaminações, propositais ou não, serviram e servem para espoliar terras indígenas e para o contínuo genocídio dos povos originários", afirma.
 Palmquist classifica inclusive como criminosa a política de aproximação
 de tribos indígenas instalada durante a ditadura, que teria sido 
diretamente responsável pelo extermínio de milhares de índios. 
"Muito rapidamente, a Funai se transformou numa promotora da atração, pacificação e contato com as tribos indígenas, num momento em que já se sabia quais eram as consequências dessa política."
 No Relatório Figueiredo, a omissão é também destacada como um dentre os
 vários crimes cometidos por membros do SPI. "A falta de assistência, 
porém, é a mais eficiente maneira de praticar o assassinato", diz o 
documento. 
 Nesse sentido, Pacheco lembra da desestruturação do sistema de atenção à
 saúde no Brasil durante a ditadura, especialmente na década de 1970, 
num período em que a política de aproximação das comunidades indígenas 
funcionava a todo vapor. 
 "A ausência de equipes e estruturas de assistência médica em momentos 
de extrema necessidade deve entrar sim na conta dos agentes públicos, 
dentre eles o presidente, na medida em que ela expressa uma política do 
governo de violar sistematicamente direitos indígenas", declara o 
pesquisador. 
 
 Tasso Azevedo sobre o governo com os indígenas: ‘Acúmulo de tragédias para esses povos’ 
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