O turismo ecológico traz riqueza para a Tanzânia. Mas o excesso de visitantes ameaça o equilíbrio ambiental e o parque mais famoso do país pode ser cortado por uma estrada.
Haroldo Castro (texto e fotos), de Serengeti (Tanzânia)
LEI DA SELVA Uma impala perdida é atacada por duas leoas no Parque Ruaha. É um flagrante raro em safáris
A escolha do percurso da estrada de Serengeti simboliza os dilemas não só da Tanzânia, mas de todos os países com uma riqueza natural única. Esse patrimônio de vida selvagem sustenta um turismo gerador de empregos e de renda. Na Tanzânia, os 700 mil visitantes por ano contribuem com US$ 950 milhões à economia. É mais do que o faturamento da agricultura. Mas o desafio é evitar que a exploração excessiva dos parques ou de outras atividades econômicas prejudique o exuberante espetáculo natural. “O desenvolvimento de nosso país é prioritário, e o governo precisa investir mais em infraestrutura”, diz Scholastica Ponera, diretora da operadora Pongo Safaris, de Dar es Salaam, principal cidade do país. “Mas deve fazer isso sem manchar nosso patrimônio natural.”
Em busca de uma solução conciliatória para a estrada de Serengeti, o governo alemão propôs um desenho alternativo, contornando a reserva e evitando a divisão do parque. É a chamada Rota Sul. Um dos argumentos é o benefício social. “Enquanto a Rota Norte favoreceria cerca de 430 mil tanzanianos, a Rota Sul, mais longa, beneficiaria uma população maior, de 2,3 milhões de habitantes”, afirma Boyd Norton, diretor da ONG Serengeti Watch. O Banco Mundial e a Alemanha ofereceram apoio técnico e financeiro. Mesmo assim, o presidente tanzaniano, Jakaya Kikwete, reeleito em outubro de 2010, ainda não aceitou oficialmente a oferta, insistindo, em seus discursos, na Rota Norte que atravessa o parque. Segundo o alemão Wolfgang Thome, radicado em Uganda e especialista em turismo, uma das razões seria a “instalação de uma fábrica de carbonato de sódio às margens do Lago Natron”, um lago alcalino situado a 80 quilômetros de Serengeti.
Serengeti não é a única atração turística em risco na Tanzânia. Ironicamente, são os próprios visitantes que ameaçam a saúde ambiental da Área de Conservação Ngorongoro, eleita como patrimônio mundial pela Unesco. A região foi moldada há 2 milhões ou 3 milhões de anos, quando o Vulcão Ngorongoro teria explodido, formando uma cratera com quase 20 quilômetros de diâmetro. Dentro dela, há um ecossistema particular, onde proliferam mais de 25 mil mamíferos selvagens. Minha primeira surpresa ao visitar a área é com um elefante, o maior macho da espécie dentro da cratera. Sua presa mede quase 2 metros e chega a encostá-la no solo. Como as presas nunca param de crescer, não é difícil calcular que o gigante também deve ser um dos mais velhos do grupo. Os leões de Ngorongoro possuem uma história particular e nem sempre saudável. Há algumas décadas, devido aos cruzamentos entre o grupo, isolado de seus parentes do Parque Serengeti, alguns leões nasceram com problemas de consanguinidade e têm menor imunidade.
Entrar nesse paraíso reservado é caro. O visitante paga US$ 200 para cada veículo, mais US$ 50 por pessoa. Essa contribuição alimenta os trabalhos de conservação de Ngorongoro com milhões de dólares anuais. O preço elevado também deveria inibir um número maior de visitantes, diminuindo o impacto em um ambiente tão frágil. Quando observo uma meia dúzia de carros indo para a mesma direção, levantando rastros de poeira, deduzo que um animal é o ponto magnético de convergência. No local, todos os olhos, binóculos, câmeras e filmadoras convergem para um guepardo. O felino, o animal mais veloz do planeta, com picos que atingem 120 quilômetros por hora, está sentado sobre suas patas traseiras e esquadrinha o horizonte em busca de alguma presa. O guepardo não muda de posição, e os carros continuam chegando. Quando olho a meu redor, conto 16 veículos, com um mínimo de quatro passageiros em cada um.
O excesso de turistas pode pôr em risco a saúde ambiental da reserva. Pesquisadores concluíram que um grande número de visitantes rodeando um único animal pode causar estresse. O efeito mais negativo é inibir a iniciativa para caçar. Mesmo para o guepardo, que pode acelerar até 100 quilômetros por hora em apenas três segundos (como uma Ferrari), a perseguição tem um elevado custo energético. Por isso, o guepardo só vai investir em uma arrancada quando ele estiver certo que conseguirá a presa. E os turistas afugentaram as presas. O guepardo, enfim, se levanta e caminha em direção contrária à manada de jipes. Prefere jejuar por mais algumas horas. Essa cena acontece regularmente. A solução para Ngorongoro é mais simples do que a de Serengeti: basta limitar o número de vans dentro da cratera.
Com uma possível estrada cortando o Serengeti e um congestionamento crescente de vans em Ngorongoro, a magia da observação de animais selvagens está se transferindo para outras áreas ainda intocadas, de acesso difícil. Uma delas é a Reserva Natural Selous. Sua mata é mais fechada do que a das savanas do norte e o campo de visão é mais reduzido. Nas primeiras duas horas em busca de animais, vejo apenas girafas e impalas. A apatia é quebrada por uma freada. No meio da estrada, descubro um animal deitado perto de uma poça de lama, lambuzado. É um cachorro-selvagem-africano, uma espécie rara e difícil de ser avistada. Ameaçado de extinção, já desapareceu no leste da África. Conservacionistas estimam que existam entre 3 mil e 5.500 animais, distribuídos em três locais específicos, como no Parque Nacional Kruger (África do Sul), no Delta do Okavango (Botsuana) e aqui na Reserva Selous.
Mas a maior área protegida da Tanzânia é o Parque Nacional Ruaha (quase do tamanho de Sergipe). A árvore mais simbólica da África, o milenar baobá, capaz de guardar em seu interior milhares de litros de água, parece ter encontrado um solo perfeito em Ruaha. Um guarda-parques estima que haja, em Ruaha, meio milhão dessas árvores. Durante os nove meses que o baobá fica sem folhas, seus galhos secos e tortuosos parecem um emaranhado de raízes olhando para o céu. Durante os dias que transito pelas pistas de Ruaha, não cruzo com nenhuma caminhonete. Estou sozinho no lugar, uma sensação radicalmente oposta àquela em Ngorongoro. Aqui, a natureza se impõe. O número de elefantes é 100 vezes maior que o de pessoas que vivem no parque. São mais de 10 mil paquidermes, a maior população de elefantes do leste da África.
O encontro mais espetacular acontece com leões. Em três dias, consigo ver 29 indivíduos em três diferentes grupos. Descubro um dos bandos jogado no solo, como trapos sujos. Os felinos parecem mortos. Em uma fração de segundo, porém, o macho do grupo acorda, rosna, se levanta e corre ao encontro de uma gazela perdida. Pega de surpresa, ela escolhe a rota de fuga errada e, em vez de regressar por onde veio, cai direto no antro das leoas. As fêmeas, exímias caçadoras, despertadas pelo rugido do macho, recebem a impala de boca aberta. Uma agarra o cangote, outra o flanco. Outras duas surgem e capturam as pernas. O macho também quer sua parte: ele arranca a cabeça. Em cinco segundos, a impala foi esquartejada por felinos que pareciam lerdos e dorminhocos. Presenciar uma caçada dessas é um evento raro. Não é coincidência que esse instante tenha acontecido em Ruaha, longe das vans de turistas de Ngorongoro e de uma futura rodovia que pretende cortar um santuário natural. Aqui, quem manda ainda é a natureza.
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