Cada uma das camadas de solo que compõem montanhas, cânions, falésias e
outras formas de relevo são como páginas que contêm informações sobre
quando e como a paisagem que vemos hoje foi formada.
As rochas mais próximas da crosta terrestre são as primeiras páginas do livro, aquelas que contam o início da história.A partir daí, à medida que mais camadas se sobrepõem, aprendemos com os tempos mais recentes do nosso planeta.
Mas e se faltassem páginas neste livro? Como podemos entender uma história se não podemos ler todos os capítulos?
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Camadas de rocha são como páginas de um livro, repletas de informações — Foto: Getty Images via BBC
Isso é exatamente o que acontece com o registro geológico da Terra.
Entre as camadas rochosas mais antigas e as mais recentes, há uma lacuna enorme, muitas páginas faltando.
Essa lacuna, da qual não temos informações, equivale a um período que
em algumas partes do mundo corresponde a 1 bilhão de anos, segundo a
União Geofísica dos Estados Unidos (AGU, na sigla em inglês).
Esse imenso vazio é conhecido como Grande Inconformidade e é um dos maiores enigmas da geologia.
"Um bilhão de anos é quase um quarto da história da Terra, é muita
informação perdida, muito tempo perdido", diz a geóloga Barra Peak,
doutoranda em Ciências Geológicas pela Universidade do Colorado Boulder e
especialista na Grande Inconformidade, à BBC News Mundo, o serviço de
notícias em espanhol da BBC.
Em um artigo de 2020, um grupo de pesquisadores daquela universidade
descreveu a Grande Inconformidade como "amnésia geológica".
A que se deve a Grande Inconformidade, que pistas existem sobre esse tempo perdido e por que é importante resolver o mistério?
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'Um bilhão de anos é quase um quarto da história da Terra, é muita
informação perdida, muito tempo perdido', diz a geóloga Barra Peak —
Foto: Barra Peak/Arquivo Pessoal
Camadas sobre camadas
Na geologia, a passagem do tempo é registrada nas camadas de rocha e
sedimento que se depositam umas sobre as outras. As camadas inferiores
são as mais antigas e as que se acumulam no topo são cada vez mais
recentes.
O tipo de rocha e a localização de cada camada fornecem aos
pesquisadores informações sobre como e quando essa região do solo se
formou.
O estudo dessas camadas é chamado de estratigrafia e ajuda a saber como era a Terra na época em que essa camada foi formada.
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Grand Canyon é um dos lugares onde a Grande Inconformidade é evidente — Foto: Berra Peak
Um dos lugares mais famosos onde essas camadas podem ser claramente identificadas é o Grand Canyon no Arizona, Estados Unidos.
Cada linha horizontal mostra onde, quando e como as rochas que compõem essa camada foram depositadas.
E foi no Grand Canyon, nos Estados Unidos, que a Grande Inconformidade foi identificada pela primeira vez.
O geólogo John Wesley Powell, em 1869, foi quem primeiro notou que
havia um pedaço de tempo que não estava escrito naquele livro de pedras.
Uma lacuna no solo
"Inconformidades" nas camadas do solo ocorrem quando rochas ou
sedimentos erodem e o tempo passa antes que uma nova camada seja
produzida, segundo o Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS, na
sigla em inglês).
Após esse período, em algum momento, uma nova camada de rochas se
formará na superfície erodida, mas será impossível preencher essa lacuna
durante a qual nenhum sedimento foi acumulado.
Isso explica por que em várias partes do mundo podemos ver camadas de
rocha muito antigas em cima de camadas de rocha muito jovens, sem uma
camada de rocha de meia-idade entre elas.
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Imagem mostra a Grande Inconformidade no Grand Canyon. As linhas azuis
mostram as camadas rochosas mais antigas. As linhas amarelas mostram as
rochas mais recentes. A linha vermelha mostra onde faltam as camadas
rochosas que ligariam a sequência temporal entre as camadas superior e
inferior. — Foto: USGS
Ao descobrir a idade das pedras mais antigas e mais novas, os
pesquisadores deduzem o período de tempo para o qual não têm registro.
E onde estão aquelas rochas perdidas?
Em alguns lugares, explica Peak, as camadas estão faltando porque as
rochas foram destruídas pela água ou pela erosão, transformando-as em
areia que acabou sendo depositada, por exemplo, em oceanos antigos.
Mas, em outros lugares, não está claro se a camada chegou a existir em algum momento.
"Pode ser que naqueles lugares nunca tenha se depositado areia ou
argila que mais tarde se transformou em rocha, que não estivesse
realmente acontecendo nada naquela paisagem, como se ela estivesse
simplesmente ali parada há muito tempo", diz a geóloga.
A que se deve a Grande Inconformidade?
A resposta é que ninguém sabe.
Peak, no entanto, diz que há pelo menos quatro hipóteses principais que tentam explicar essa era perdida.
A primeira tem a ver com a formação de um antigo supercontinente
chamado Rodínia, que se formou entre 1 bilhão e 800 milhões de anos
atrás.
Isso foi antes da formação do famoso supercontinente Pangeia.
Quando Rodínia estava sendo formada, devido aos movimentos tectônicos,
um grande número de rochas foi exposto às condições atmosféricas, o que
poderia favorecer a destruição do novo material rochoso que estava se
formando.
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Esta é a aparência da Terra há 600 milhões de anos — Foto: Getty Images via BBC
"Quando as rochas são novas, elas são muito suscetíveis aos processos que as destroem", diz Peak.
A segunda refere-se a um processo muito semelhante: a formação de outro
supercontinente chamado Panótia, há cerca de 580 milhões de anos.
Uma terceira explicação possível também tem a ver com Rodínia, mas não
com a formação desse supercontinente e sim com sua fragmentação, que
ocorreu há cerca de 750 milhões de anos.
Nesse processo de separação das massas de terra, também fica exposto
muito material que os geólogos chamam de "rocha fresca", que é
facilmente vulnerável à erosão.
A Hipótese do Clima
E Peak menciona um quarto possível motivo, que não tem mais a ver com
supercontinentes, mas com as mudanças climáticas ao longo da história do
planeta.
A geóloga explica haver evidências de que durante um período dentro do
que corresponde à chamada iconformidade houve uma fase de resfriamento
da Terra, há cerca de 700 milhões de anos.
Nesse período, é provável que quase todo o planeta estivesse coberto por geleiras.
Assim, a hipótese é que esse gelo tenha removido o que eram então as camadas mais externas.
"Se todo o globo estiver coberto de gelo, não há muito material sendo depositado para formar novas rochas", diz Peak.
Sem resposta
Para cada uma dessas hipóteses, existem estudos que as reforçam ou tentam refutá-las.
Segundo Peak, porém, o fato é que por enquanto não há uma única resposta que explique a Grande Inconformidade.
"Talvez não exista uma resposta única e simples que explique o fenômeno a nível global", diz a especialista.
"Pode não ser apenas devido à formação dos continentes ou clima, mas
características regionais que controlam a erosão das rochas", diz.
"Globalmente, não podemos dizer que há uma causa única."
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Parque Natural Ilha Maria, na Austrália — Foto: Getty Images via BBC
As chaves que a Grande Inconformidade guarda
Para determinar a idade das rochas e, portanto, as camadas que faltam,
os geólogos observam o decaimento radioativo das rochas, ou seja,
analisam os elementos químicos em que as rochas se decompõem ao longo do
tempo.
No caso de Peak, por exemplo, ela analisa o processo de resfriamento das rochas, para saber a qual período elas pertencem.
Juntar as peças que explicam a Grande Inconformidade é uma maneira de
aprender como era a Terra primitiva. Isso, assinala Peak, é importante
porque nesse período ocorreram grandes mudanças, não apenas geológicas,
mas também biológicas, para as quais pode fornecer informações sobre a
evolução da vida no planeta.
Um artigo da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara de 2020 sobre a
Grande Inconformidade menciona que esse fenômeno está ligado a outro
grande enigma da ciência: o súbito surgimento de vida complexa nos
períodos Ediacarano (entre 635 milhões de anos e 541 milhões de anos
atrás) e o Cambriano (entre 541 milhões de anos e 485 milhões de anos).
"A explosão cambriana foi o dilema de Darwin", diz Francis Macdonald,
geólogo da UC Santa Barbara. "Esta é uma questão que tem 200 anos. Se
conseguirmos resolvê-la, seremos rockstars", brinca.
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