Isso aconteceu por volta de 72 mil a.C., na ilha de Sumatra, na
Indonésia. O supervulcão Toba entrou em erupção, no que se acredita ter
sido o maior evento desse tipo nos últimos 100 mil anos. Uma série de
explosões estrondosas explodiu 9,5 quatrilhões de quilos de cinzas, que
se espalharam em nuvens que escureceram o céu e se arrastaram por cerca
de 47 km na atmosfera.
Na sequência, uma vasta área em toda a Ásia foi coberta por uma camada
de poeira maciça de 3 a 10 centímetros de espessura. Ela sufocou as
fontes de água e grudou na vegetação como cimento —depósitos da erupção
foram encontrados tão longe quanto a África Oriental, a 7,3 mil km de
distância.
Mas, crucialmente, alguns cientistas acreditam que o evento extremo
mergulhou o mundo em um inverno vulcânico que durou décadas — e quase
extinguiu nossa espécie.
Em 1993, uma equipe de pesquisadores americanos estudou o genoma humano
em busca de pistas sobre o passado profundo e descobriu uma assinatura
reveladora de um grande "gargalo populacional" — um momento em que a
humanidade encolheu tão drasticamente que todas as gerações subsequentes
que surgiram fora da África se tornaram significativamente mais
próximas.
Estudos posteriores revelaram que nesta era precária, que pode ter
ocorrido entre 50 mil e 100 mil anos atrás, a população pode ter se
reduzido a apenas 10 mil pessoas — o equivalente aos habitantes do
sonolento assentamento de Elkhorn em Wisconsin, nos Estados Unidos, ou o
número de indivíduos que participaram de um único casamento coletivo na
Malásia, em 2020.
A parte menos afetada do mundo pelo vulcão foi a África, onde a
diversidade genética permanece alta até hoje — neste único continente,
existem diferenças genéticas maiores entre certos grupos locais do que
entre africanos e europeus.
Alguns acham que esse momento não é uma coincidência — eles acreditam
que foi a erupção vulcânica que fez isso. A ideia é muito contestada,
mas não há dúvida de que grande parte da humanidade descende de um
número relativamente modesto de ancestrais super-resistentes.
Um avanço rápido de 74 mil anos na história e nossa espécie, outrora um
obscuro primata sem pelos corporais, sofreu uma explosão populacional,
colonizando quase todos os habitats do planeta e exercendo uma
influência até nos cantos mais remotos — em 2018, os cientistas
encontraram um saco plástico a 10,8 mil metros abaixo da superfície do
oceano no fundo da Fossa das Marianas, enquanto outra equipe descobriu
recentemente "produtos químicos eternos" feitos pelo homem no Monte
Everest.
Nenhuma parte do mundo é intocada — todos os lagos, florestas e cânions
já tiveram algum tipo de contato com a atividade humana.
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As maiores faixas de floresta remanescentes do mundo estão desaparecendo rapidamente — Foto: Getty Images
Ao mesmo tempo, nossos números e engenhosidade permitiram à humanidade
realizar feitos que nenhum outro animal poderia sonhar — dividir átomos,
enviar equipamentos complexos a quase 1,6 milhão de km para observar
planetas se formando em galáxias distantes e contribuir para uma
impressionante diversidade de arte e cultura.
Todos os dias, coletivamente tiramos 4,1 bilhões de fotografias e trocamos entre 80 e 127 trilhões de palavras.
Na data estranhamente específica de 15 de novembro de 2022, as Nações
Unidas preveem que haverá oito bilhões de humanos vivos ao mesmo tempo —
até 800 mil vezes mais do que os sobreviventes da catástrofe daquela
erupção vulcânica.
Hoje, nossa população é tão enorme, com tão pouca diversidade genética
fora da África, que um pesquisador observou recentemente que não é tão
surpreendente que algumas pessoas pareçam semelhantes a perfeitos
estranhos — há um pool genético limitado que está sendo constantemente
reciclado, e acontecem cerca de 370 mil novas oportunidades (na forma de
bebês nascidos) para que essas coincidências "apareçam" todos os dias.
Mas com a população em expansão, veio um grande cisma. Alguns veem os
números em alta como uma história de sucesso sem precedentes — na
verdade, há uma escola emergente de pensamento de que defende
precisarmos de mais pessoas.
Em 2018, o bilionário da tecnologia Jeff Bezos previu um futuro em que
nossa população atingirá um novo marco decimal, na forma de 1 trilhão de
humanos espalhados pelo Sistema Solar — e anunciou que está planejando
maneiras de tornar isso realidade.
Outros, na contramão — incluindo o apresentador e historiador natural
Sir David Attenborough — rotularam as massas humanas de "praga na
Terra".
Segundo essa visão, quase todos os problemas ambientais que enfrentamos
atualmente, desde mudanças climáticas até perda de biodiversidade,
estresse hídrico e conflitos por terra, podem ser ligados com a nossa
reprodução desenfreada nos últimos séculos.
Em 1994 — quando a população global era de apenas 5,5 bilhões — uma
equipe de pesquisadores da Universidade Stanford, nos EUA, calculou que o
tamanho ideal de nossa espécie variaria entre 1,5 e 2 bilhões de
pessoas.
Será que o mundo está superpovoado atualmente? E o que o futuro reserva
para o domínio global da humanidade? O debate sobre o número ideal de
pessoas no planeta está desde sempre fragmentado e emocionalmente
carregado — mas o tempo está se esgotando para decidir qual é a melhor
direção.
Uma preocupação antiga
No final da década de 1980, na região central do Iraque, uma equipe de
arqueólogos da Universidade de Bagdá estava escavando uma biblioteca em
ruínas na antiga cidade de Sippar.
Em meio à areia, poeira e paredes antigas, eles encontraram 400 tábuas
de argila pequenas — registros que estavam esquecidos num túmulo
acadêmico por mais de 3.500 anos, ainda nas mesmas prateleiras onde
haviam sido organizados por mãos babilônicas.
Mas quatro dessas tábuas em particular eram especiais. Elas continham
as seções que faltavam de uma história encontrada em fragmentos em
tabuletas separadas espalhadas pela Mesopotâmia, o que intriga os
historiadores até hoje.
"Ainda não haviam se passado 1.200 anos [desde a criação da
humanidade], quando a terra se estendia e as pessoas se
multiplicavam...", diz o Atra-hasis — o poema épico estampado no barro
por um escriba anônimo por volta do século 17 a.C.
É a versão mesopotâmica da onipresente história do Grande Dilúvio,
encontrada em inúmeras formas em várias culturas ao redor do mundo, na
qual a civilização é destruída por uma divindade — e pode conter uma das
primeiras menções de superpopulação no registro histórico.
No conto antigo, os deuses se aborrecem com todo o "barulho" criado
pelas hordas humanas, bem como com as "terras que rugem feito um touro"
devido ao estresse a que foram submetidos pelas demandas de nossa
espécie.
O deus da atmosfera, Enlil, decide desencadear alguns perigos para
reduzir os números novamente — ele planeja pragas, fomes e secas em
intervalos regulares a cada 1.200 anos. Felizmente, outro deus salva o
dia. Mas então Enlil planeja uma grande inundação... E o conto clássico
da construção de barcos e arcas segue em frente.
Na época em que o Atra-hasis foi escrito, estima-se que a população
global tinha entre 27 e 50 milhões de pessoas, o equivalente ao número
que atualmente habita países como Camarões ou Coréia do Sul — ou de 0,3%
a 0,6% do total de indivíduos vivos hoje.
Durante o milênio que se seguiu, os estudiosos parecem ter ficado
relativamente quietos sobre qualquer preocupação populacional. Até que,
na Grécia Antiga, eles começaram a refletir sobre o assunto novamente.
O filósofo Platão tinha algumas opiniões fortes sobre o tema.
Após um período de rápido crescimento, em que a população de Atenas
duplicou, ele lamentou: "O que resta agora é como o esqueleto de um
corpo devastado pela doença; o solo rico foi levado e resta apenas a
estrutura nua do distrito."
Ele não apenas acreditava no controle estrito da população,
administrado pelo Estado, como também acabou concluindo que a cidade
ideal não deveria ter mais de 5.040 cidadãos. O filósofo ainda achava
que a instalação de colônias era uma boa maneira de "descarregar"
qualquer excesso.
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Pode ser difícil entender a escala impressionante da população humana — Foto: Getty Images
Na obra-prima de Platão, A República, escrita por volta de 375 a.C.,
ele descreve duas cidades-estado imaginárias — regiões administrativas
governadas quase como pequenos países. Uma é saudável e a outra é
"luxuosa" e "febril".
Nesta última, a população gasta e devora excessivamente, entregando-se
ao consumismo até "ultrapassar o limite de suas necessidades".
Infelizmente, esta cidade-estado moralmente decrépita eventualmente
recorre à tomada de terras vizinhas, o que naturalmente se transforma
numa guerra — o local simplesmente não consegue sustentar a grande e
gananciosa população sem obter recursos extras.
Platão se deparou com um debate que ainda hoje é intenso: a população
humana é o problema? Ou a questão está nos recursos que ela consome?
Demorou mais de cinco séculos depois de Platão para que a escala global de nossa explosão populacional se tornasse clara.
O autor Tertuliano, que viveu na cidade romana de Cártago, antecipou-se
às observações modernas sobre nossas multidões destrutivas.
Em 200 d.C., quando a população humana total atingiu entre 190 e 256
milhões — algo próximo do número de indivíduos que atualmente habita a
Nigéria ou a Indonésia — ele acreditava que o mundo inteiro já havia
sido explorado e as pessoas se tornaram um fardo para o planeta.
"A natureza não pode mais nos sustentar", escreveu.
Nos próximos 1.500 anos, a população humana global mais que triplicou.
Eventualmente, essa preocupação isolada de alguns se transformou em
pânico generalizado.
É justamente aí que entra Thomas Malthus, um clérigo inglês com
tendência ao pessimismo. Em seu famoso trabalho, Um Ensaio sobre o
Princípio da População, publicado em 1798, ele começou com duas
observações importantes: todas as pessoas precisam comer e gostam de
fazer sexo.
Quando levados à sua conclusão lógica, explicou, as demandas da humanidade levariam à superação dos suprimentos do planeta.
"A população, quando não controlada, aumenta em uma proporção
geométrica. A subsistência aumenta apenas em uma proporção aritmética.
Um leve conhecimento dos números mostrará a imensidão da primeira
potência em comparação com a segunda", escreveu Malthus.
Em outras palavras, um grande número de pessoas leva a um número ainda
maior de descendentes, em uma espécie de ciclo de feedback positivo —
mas nossa capacidade de produzir alimentos não necessariamente se
acelera da mesma maneira.
Essas palavras simples tiveram um efeito imediato, acendendo um medo
apaixonado em alguns e raiva em outros, que continuariam a reverberar
esses conceitos na sociedade por décadas.
O primeiro grupo achava que algo precisava ser feito para impedir que
nossos números saíssem do controle. O segundo, por sua vez, defendia que
limitar o número de pessoas era absurdo ou antiético, e todos os
esforços deveriam ser feitos para aumentar a oferta de alimentos.
O campo que adotou a ideia de menos pessoas foi particularmente crítico
às Leis dos Pobres feitas na Inglaterra, introduzidas centenas de anos
antes, que envolviam pagamentos a pessoas que viviam na pobreza para
ajudá-las a cuidar dos filhos. Especulou-se que estes aportes
financeiros encorajavam as pessoas a ter famílias maiores.
Na época em que o ensaio de Malthus foi publicado, havia 800 milhões de pessoas no planeta.
Não foi até 1968, no entanto, que as preocupações modernas sobre a
superpopulação global ganharam terreno, quando um professor da
Universidade Stanford, Paul Ehrlich, e sua esposa, Anne Ehrlich, foram
coautores do livro The Population Bomb ("A Bomba Populacional", em
tradução livre).
A cidade indiana de Delhi foi a inspiração. O casal estava voltando
para o hotel em um táxi e passou por uma favela, onde ficou assustado
com a quantidade de atividade humana nas ruas. Eles escreveram sobre a
experiência de uma forma que foi fortemente criticada, especialmente
porque a população de Londres à época era mais que o dobro da de Delhi.
O casal escreveu o livro por causa de preocupações com a fome em massa
que eles acreditavam que estava chegando, principalmente nos países em
desenvolvimento, mas também em lugares como os Estados Unidos, onde
muitos começavam a perceber o impacto no meio ambiente.
O trabalho foi amplamente creditado — ou acusado, a depender do ponto
de vista — de desencadear muitas das ansiedades atuais sobre a
superpopulação.
É claro que as discussões sobre quantas pessoas deveriam existir nunca
foram puramente acadêmicas. Às vezes, elas foram sequestradas para
justificar perseguição, limpeza étnica e genocídio.
Em cada caso, os perpetradores pretendiam diminuir as populações de
grupos específicos de pessoas, como aqueles de uma determinada classe
social, religião ou etnia — em vez da humanidade como um todo. Mas,
mesmo assim, às vezes esses episódios são vistos como exemplos dos
perigos que o próprio conceito de superpopulação pode representar.
Já em 1834, apenas três décadas e meia após a publicação do ensaio de
Malthus, as Leis dos Pobres foram descartadas e substituídas por outras
regras mais rígidas.
Isso foi em parte devido às preocupações malthusianas de que essa
classe social (que ele chamava de "camponeses") estava se reproduzindo
demais e tinha o resultado de levar crianças órfãs a asilos sombrios e
insalubres, como o retratado no romance de Charles Dickens, Oliver
Twist.
Ao longo dos séculos seguintes, a eugenia foi continuamente disfarçada
de controle populacional — ou recebeu apoio do movimento — como durante
as esterilizações forçadas de pessoas de grupos étnicos minoritários na
América dos anos 1970.
O conceito também foi usado para restringir as liberdades individuais.
Em 1980, a China introduziu a controversa política do filho único, que
foi amplamente vista como uma violação invasiva dos direitos sexuais e
reprodutivos da população.
Um futuro controverso
Como resultado de toda essa história , a engenharia populacional é uma área profundamente dividida.
Hoje, quaisquer políticas que envolvam cotas ou metas para aumentar ou
diminuir a população humana são quase universalmente condenadas, exceto
por um punhado de organizações extremistas.
O risco desses incentivos levarem à coerção ou outras atrocidades é visto como muito alto. Mas há pouco acordo além disso.
As baixas taxas de natalidade
Em uma extremidade do espectro estão aqueles que veem as taxas de
fertilidade mais baixas em algumas áreas como uma crise. Um demógrafo
está tão preocupado com a queda na taxa de natalidade no Reino Unido que
sugeriu taxar as famílias sem filhos.
Em 2019, havia 1,65 crianças nascidas no país por mulher em média. Isso
está abaixo do nível de reposição — o número de nascimentos necessários
para manter o mesmo tamanho populacional — de 2,07, embora a população
ainda esteja crescendo em geral devido aos imigrantes que chegam de
outros países.
A visão oposta é que desacelerar e eventualmente interromper o
crescimento populacional global não é apenas eminentemente gerenciável e
desejável, mas pode ser alcançado por meios inteiramente voluntários —
métodos como simplesmente fornecer contracepção para aqueles que
gostariam e educar as mulheres.
Dessa forma, os defensores dessa posição acreditam que poderíamos não
apenas beneficiar o planeta, mas melhorar a qualidade de vida dos
cidadãos mais pobres do mundo.
Uma organização que acredita nessa abordagem é a instituição de
caridade Population Matters, com sede no Reino Unido, que faz campanha
para alcançar uma população global sustentável.
Eles defendem o enfrentamento das pressões que o consumismo está
colocando no planeta, ao mesmo tempo em que destacam o papel que o
tamanho da população tem que desempenhar nisso.
"Deploramos qualquer forma de controle populacional ou coerção,
restrição de escolha", diz o diretor, Robin Maynard. "Trata-se então de
permitir o acesso, garantir a escolha e cumprir os direitos. E essa é
realmente a maneira mais eficaz de as pessoas tomarem decisões que são
boas para elas e para o planeta."
Por outro lado, alguns apostam numa mudança do foco: a ideia passa de
ajustar o número de pessoas no mundo para refletir sobre nossas
atividades.
Os defensores argumentam que a quantidade de recursos que cada pessoa
usa tem mais impacto em nossa influência coletiva e apontam que o
consumo é significativamente maior em países mais ricos e com menores
taxas de natalidade.
Reduzir nossas demandas individuais no planeta poderia diminuir a
"pegada" da humanidade sem sufocar o crescimento nos países mais pobres.
De fato, o interesse em reduzir o crescimento populacional em partes
menos desenvolvidas do mundo foi acusado de ter conotações racistas,
quando a Europa e a América do Norte são mais densamente povoadas em
geral.
Finalmente, há a "solução" fatalista para a perene questão da
população: simplesmente não faça nada. Essa visão se baseia na dinâmica
altamente instável de nossa população global — ela deve crescer
significativamente, mas depois encolherá. Cada um pode conseguir o que
quer no final, embora isso não seja garantido para sempre.
As estimativas variam, mas espera-se que cheguemos o "pico
populacional" por volta de 2070 ou 2080, quando haverá entre 9,4 bilhões
e 10,4 bilhões de pessoas no planeta. Pode ser um processo lento — se
chegarmos a 10,4 bilhões, a Organização das Nações Unidas (ONU) espera
que a população permaneça nesse nível por duas décadas — mas,
eventualmente, depois disso, a previsão é de que esse número comece a
diminuir.
No livro Empty Planet: The Shock of Global Population Decline ("Planeta
Vazio: o Choque do Declínio da População Global, em tradução livre), os
autores apresentam uma visão de futuro muito diferente daquela a que
estamos acostumados, em que o mundo lida com os novos desafios e
oportunidades que o despovoamento pode apresentar.
Em meio a toda a controvérsia e incerteza, pode ser difícil saber o que
pensar. Mas como o número de pessoas no planeta pode afetar alguns
aspectos-chave de nossas vidas no futuro — o meio ambiente, a economia e
nosso bem-estar coletivo?
Um desafio ambiental
Uma câmera percorre a floresta de Madagascar. O local é cheio de
árvores e traz o mistério emocionante de um ambiente desconhecido.
Então, de repente, lá está: um borrão branco salta pela lente e
desaparece. O animal é um sifaka — um lêmure tímido e indescritível com
membros longos, pele clara e um rosto preto, como um ursinho de pelúcia
esguio.
O breve encontro faz parte de um documentário da BBC, Oceano Índico com
Simon Reeve, e o apresentador logo revela uma advertência surpreendente
sobre o achado da equipe.
Afinal, esta não é a natureza selvagem — eles estão na reserva Berenty
no sul de Madagascar, um pequeno pedaço de floresta cercado de
plantações comerciais, um dos últimos lugares que essa criatura rara
pode chamar de lar.
No centro de visitantes, Reeve diz que foi informado de forma confiável
que quase todos os cinegrafistas da vida selvagem que filmam na área
instalam os equipamentos num local exato, onde os lêmures são mais
abundantes.
Os equipamentos ficam de costas para a floresta, para não capturar
nenhum edifício atrás. Embora os espectadores possam pensar que estão
vislumbrando o desconhecido selvagem, dá para argumentar que o que eles
realmente estão recebendo é uma ilusão cuidadosamente selecionada de uma
natureza pretensamente indomável.
O documentário destaca o "mito da natureza intocada" — um mal-entendido
que pode ocorrer quando as pessoas são apresentadas a imagens
majestosas do mundo natural que excluem os seres humanos inteiramente,
ou minimizam drasticamente a nossa onipresença, sugerindo que ainda
existem vastas extensões de terra intocadas por aí.
As imagens de satélite são uma ferramenta particularmente poderosa para
quebrar essa noção: do ar, muitos países revelam-se fortemente
adaptados para o uso humano.
Até onde a vista alcança, a terra é uma colcha de retalhos de campos
agrícolas, entremeados de estradas e fileiras e mais fileiras de
prédios. Algumas paisagens foram tão transformadas em apenas algumas
décadas, por obras de engenharia ou desmatamento, que quase não são
reconhecíveis.
Essas mudanças vêm com algumas estatísticas surpreendentes. De acordo
com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação
(FAO), 38% da superfície terrestre do planeta é usada para cultivar
alimentos e outros produtos (como combustível) para humanos ou o gado —
são cinco bilhões de hectares no total.
E, embora nossos ancestrais vivessem entre gigantes, caçando mamutes e
pássaros elefantes de 450 kg, hoje somos a espécie de vertebrados
dominante em terra — um grupo que inclui tudo, de lagartixas a lêmures.
Em peso, os humanos representam 32% dos vertebrados terrestres, enquanto
os animais selvagens são apenas 1% do total. A pecuária responde pelo
resto.
A organização de preservação da natureza selvagem WWF descobriu que as
populações de animais selvagens diminuíram em dois terços entre 1970 e
2020 — nesse período, a população global mais que dobrou.
De fato, à medida que nosso domínio aumenta, muitas mudanças ambientais
vêm ocorrendo em paralelo — e vários ambientalistas proeminentes, desde
a primatologista Jane Goodall, famosa por seu estudo sobre chimpanzés,
até o naturalista e apresentador de TV Chris Packham, expressaram
preocupações.
Em 2013, Sir David Attenborough explicou seus pontos de vista em uma
entrevista ao Radio Times: "Todos os nossos problemas ambientais se
tornam mais fáceis de resolver com menos pessoas e mais difíceis — e, em
última análise, impossíveis — de solucionar com cada vez mais pessoas."
Para alguns, o alarme sobre a pegada ambiental da humanidade os levou a
decidir ter menos ou nenhum filho — incluindo o duque e a duquesa de
Sussex, que anunciaram em 2019 que não teriam mais do que dois herdeiros
pelo bem do planeta. No mesmo ano, Miley Cyrus também declarou que
ainda não teria filhos porque a Terra está "com raiva".
Um número crescente de mulheres está se juntando ao movimento
antinatalista e aderindo ao BirthStrike (ou greve da gestação, em
tradução livre), até que a emergência climática e a crise da extinção de
espécies sejam tratadas.
A tendência foi impulsionada por uma pesquisa de 2017, que calculou que
simplesmente ter um filho a menos no mundo desenvolvido poderia reduzir
as emissões anuais de carbono de uma pessoa em 58,6 toneladas — um
valor 24 vezes superior a economia de não ter um carro.
Um estudo de 2019, liderado por Jennifer Sciubba, professora associada
de Estudos Internacionais do Rhodes College, nos EUA, analisou os níveis
de crescimento populacional em mais de 1.000 regiões em 22 países
europeus entre 1990 e 2006 e os comparou com as mudanças nos padrões de
uso do solo urbano e das emissões de dióxido de carbono.
A equipe concluiu que um grande número de pessoas teve um "efeito
considerável" sobre esses parâmetros ambientais na Europa Ocidental, mas
esses não foram os fatores mais importantes no lado oriental do
continente.
Esse suporte sutil para a ideia de que o crescimento populacional leva à
degradação ambiental é apoiado por muitos outros estudos — como também o
impacto da demanda crescente por recursos naturais, especialmente entre
os países mais ricos.
De fato, muitos ambientalistas agora acreditam que os problemas que
enfrentamos atualmente têm a ver em grande parte com o consumo, e não
com a superpopulação. Dessa perspectiva, as preocupações com o número de
habitantes do planeta transferem injustamente a culpa para os países
mais pobres.
Em 2021, um estudo descobriu que nos EUA, o crescimento populacional e o
uso de fontes de energia não renováveis estão degradando o meio
ambiente, enquanto outro revelou que o crescimento econômico e o uso de
recursos naturais na China de 1980 a 2017 levou a um aumento nas
emissões de dióxido de carbono.
Curiosamente, outras pesquisas descobriram que, embora o uso de
recursos naturais e a urbanização na China aumentem a taxa de destruição
ambiental, estes são parcialmente compensados pela disponibilidade de
"capital humano" — essencialmente, o conhecimento e a habilidade da
população humana.
Hoje
em dia, é amplamente aceito o conceito que as pessoas estão colocando
uma pressão insustentável sobre os recursos finitos do mundo — um
fenômeno que é destacado pelo "Dia da superação da Terra", a data em que
se estima que a humanidade tenha usado todos os recursos biológicos que
o planeta pode sustentar naquele ano. Em 2010, essa data era 8 de
agosto. Este ano, ela foi reduzida para 28 de julho.
Quer o problema seja o excesso de humanos, os recursos que usamos ou
ambos, "não consigo nem imaginar como mais humanos poderiam ser melhores
para o meio ambiente", diz Jennifer Sciubba, autora do livro 8 Billion
and Counting: How Sex, Death, and Migration Shape our World ("8 Bilhões e
Contando: Como Sexo, Morte e Migração Moldam Nosso Mundo", em tradução
livre).
Ela sugere que uma maneira de se argumentar envolve o exercício de
encarar os humanos e o meio ambiente como a mesma entidade, "embora esse
seja um argumento muito difícil".
No entanto, Sciubba faz questão de salientar que a ideia de uma
iminente "bomba populacional" vindo para destruir o planeta está
ultrapassada.
"No passado, havia cerca de 127 países no mundo onde as mulheres tinham
em média cinco ou mais filhos ao longo da vida", calcula. Naquela
época, as tendências populacionais realmente pareciam exponenciais — e
ela sugere que isso incutiu um pânico populacional em certas gerações
que estão vivas até hoje.
"Mas atualmente existem apenas oito [países com taxas de fecundidade
acima de cinco]", diz Sciubba. "Então, acho importante percebermos que
essas tendências mudaram."
Uma oportunidade econômica
Em 2012, o governo de Singapura criou uma maneira incomum para os
cidadãos comemorarem sua independência — e divulgou as instruções
importantes por meio de um novo rap.
O hit pretendia incentivar os jovens casais a terem mais filhos e
misturava insinuações animadas com referências patrióticas à cultura e
aos pontos turísticos que o país abriga.
"Vamos fazer um pequeno humano que se pareça com você e eu. Explorando
seu corpo como um safári noturno, eu sou um marido patriota, você é uma
esposa patriota. Deixe-me entrar em seu acampamento e fabricar uma
vida...", dizia um trecho da letra.
A música foi lançada em meio a temores sobre a taxa de fertilidade
superbaixa de Singapura, que era de apenas 1,1 nascimento por mulher em
2020.
Trata-se de um exemplo extremo do que se tornou uma tendência comum em
países ricos, onde as pessoas se casam mais tarde e optam por ter menos
filhos. Nesta nação asiática, os números provocaram preocupações sobre
quais poderiam ser as consequências para a economia do país, levando o
governo de lá a pedir aos cidadãos que fizessem a parte deles.
Esse é um conceito-chave em economia: quanto mais pessoas você tem,
mais bens ou serviços elas podem produzir e mais podem consumir. Logo, o
crescimento populacional é o melhor amigo do crescimento econômico.
Essa é uma das razões pelas quais as preocupações com o aumento da
população nas partes em desenvolvimento do mundo às vezes são vistas
como problemáticas — muitos países desenvolvidos já são densamente
povoados e, em parte, é assim que eles conquistaram a riqueza. Negar a
outros países essa oportunidade é visto como algo injusto e até racista.
No entanto, o crescimento populacional mais lento nem sempre é seguido
por uma queda econômica. Veja o Japão, que antecipou as tendências
globais de nações ricas e alcançou taxas de fertilidade abaixo do nível
de reposição já em 1966, quando de repente esse número caiu de cerca de
dois para 1,6 por lá.
"Não
acho que a economia do Japão tenha declinado à medida em que as pessoas
às vezes a retratam, se você observar os padrões de vida", diz Andrew
Mason, professor emérito do Departamento de Economia da Universidade do
Havaí, nos EUA. "Eles investiram muito em capital humano — por isso têm
menos filhos, mas enfatizam a educação e têm sistemas de saúde muito
bons."
Mason também aponta que poupança e investimento são comuns no Japão:
"Então, houve aumentos no capital [monetário] e maior produtividade . Se
você combinar essas coisas, acho que o Japão é um bom estudo de caso
sobre por que não precisamos ter pânico [sobre o declínio das taxas de
natalidade]."
E há outras formas de fazer crescer a economia de um país. Mason
ressalta que a imigração muitas vezes fornece uma fonte útil de novos
trabalhadores.
Para melhorar, a chegada de estrangeiros pode ajudar a resolver
problemas econômicos sem adicionar mais pessoas ao total da humanidade.
Mas a imigração também continua sendo um assunto controverso e altamente
politizado em alguns países — portanto, sem mudanças culturais na forma
como isso é percebido, alguns países não terão essa opção.
"Pense particularmente em países como Japão e Coréia do Sul, que
[historicamente] têm sido muito resistentes à imigração. Eles vão achar
cada vez mais vantajoso [mudar essa política]", acredita Mason.
Da mesma forma, as vantagens que a imigração pode oferecer são
inerentemente desiguais — um país obtém um impulso em sua economia às
custas de outro, cujos trabalhadores saíram.
Há um sentimento crescente de que a obsessão global em perseguir o
crescimento econômico a todo custo está ultrapassada e deve ser
totalmente abandonada.
"Uma das coisas que me frustra no debate sobre a superpopulação é que
muitos comentários saem da boca das mesmas pessoas — parece que não
queremos que haja muitas pessoas, e também desejamos ter certeza de que a
economia está sempre crescendo", diz Sciubba.
"Em um mundo onde há menos indivíduos, realmente precisamos de uma
mudança completa de mentalidade, longe do conceito em que crescimento é
igual a progresso", propõe.
Um futuro mais feliz
No entanto, a demografia influencia mais do que apenas o meio ambiente e
a economia, que também são poderosas forças ocultas na formação da
qualidade de vida das pessoas em todo o mundo.
Segundo Alex Ezeh, professor de Saúde Global da Universidade Drexel,
nos EUA, o número absoluto de pessoas em um país não é o fator mais
importante. Em vez disso, a taxa de crescimento ou declínio da população
é fundamental para as perspectivas futuras de um país. Na visão dele, é
isso que determina a rapidez com que as coisas estão mudando.
Ezeh explica que, na África, existem taxas radicalmente diferentes de
crescimento populacional atualmente, dependendo de onde você olha.
"Em vários países, particularmente na África Austral [uma das cinco
regiões definidas pelas Nações Unidas], as taxas de fecundidade
realmente caíram e o uso de contraceptivos está aumentando — a taxa de
crescimento da população está diminuindo, o que é de certa forma uma boa
notícia", aponta.
Ao mesmo tempo, alguns países da África Central ainda apresentam altas
taxas de crescimento populacional, como resultado da fecundidade elevada
e da maior expectativa de vida.
Em alguns lugares, ela está bem acima de 2,5% ao ano, "o que é enorme",
na visão de Ezeh. "A população dobrará a cada 20 anos em vários
países", estima o professor.
Mesmo dentro de uma única região, diferentes países podem estar em
caminhos surpreendentemente diferentes — Ezeh dá o exemplo dos vizinhos
Burundi e Ruanda. Enquanto o primeiro ainda apresenta altos níveis de
crescimento — com 5,3 nascimentos por mulher — no segundo, o aumento
está desacelerando, com 3,9 nascimentos por mulher em 2020, ante 4,5 em
2010.
"Acho que a conversa sobre tamanhos e números é equivocada", entende.
"Pense em uma cidade que está dobrando a cada 10 anos — e isso é o que
acontece em algumas partes da África — cujo governo realmente tem
recursos para melhorar toda a infraestrutura que existe atualmente a
cada década, a fim de manter o nível correto de cobertura desses
serviços?", questiona.
Ezeh explica que é difícil apoiar o desenvolvimento do capital humano
em condições de crescimento extremo — pesquisas recentes descobriram que
isso desempenha um papel importante na felicidade das pessoas, superior
à quantidade de dinheiro que elas ganham.
Esses fatores também são considerados como um importante mecanismo de
predizer crescimento econômico, além do grande número de moradores de um
país.
"Quando os economistas pensam sobre isso, uma grande população é ótima
para muitos resultados diferentes. Mas você alcançará essa grande
população em 10, 100 anos ou mil anos? E qual sistema dará suporte a
essa população?", pergunta Ezeh.
Um fator com um papel bem documentado na desaceleração dessa taxa de
crescimento é a educação das mulheres, que tem o efeito colateral de
aumentar a idade média em que elas dão à luz.
"Com o tempo, as mulheres têm acesso à educação, ocupam empregos e
possuem tarefas fora da família, elementos que competem com a
maternidade", diz Ezeh.
No entanto, o professor faz questão de enfatizar os méritos da educação
independentemente do impacto que a escolaridade tem no tamanho da
população — falamos aqui em um dos 17 objetivos de desenvolvimento
sustentável da ONU.
Isso chega ao cerne de uma visão moderna sobre engenharia populacional:
as políticas precisam ser implementadas em benefício da sociedade e, se
por acaso levarem a mudanças demográficas benéficas, devem ser
encaradas apenas como um bônus.
"Acho que uma das coisas que não queremos fazer é instrumentalizar a
educação feminina. Não queremos que elas frequentem a escola porque
desejamos que elas tenham menos filhos…", pondera Ezeh.
De fato, os efeitos colaterais em cascata das políticas implementadas
por outras razões destacam uma realidade impressionante da ciência
populacional: o quão imprecisas são as previsões.
Em todo o mundo, as decisões tomadas pelos governos nas próximas
décadas serão extremamente decisivas para determinar quantas pessoas
habitarão o planeta — com o poder de nos levar para um futuro em que
haverá 10 ou 15 bilhões de pessoas.
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Hoje, 38% da superfície terrestre da Terra é usada para cultivar
alimentos ou outros produtos para humanos — Foto: Getty Images
"Acho que uma das coisas que sabemos com certeza é que, [quando as
pessoas dizem que] a população da África é projetada para ser X no ano
Y, [isso] não é um destino", destaca Ezeh.
"Se você olhar para a região da África Austral, a população pode ser
três a quatro vezes maior do que é hoje em 2100, mas também pode ser 50%
maior. Ou seja, falamos de uma faixa tão grande de possibilidades e
precisamos fazer os investimentos necessários para chegar a uma taxa de
crescimento consistente com o objetivo dos países. Essa é a magnitude da
oportunidade que existe."
Uma presença em expansão
Embora o grau em que a humanidade continuará a se expandir pelo planeta
ainda não tenha sido decidido, algumas trajetórias já foram definidas.
Uma delas envolve o conceito que a população humana provavelmente
continuará a crescer por algum tempo, independentemente de quaisquer
possíveis esforços para diminuí-la.
Esse futuro se deve a um fenômeno conhecido como momentum demográfico,
em que uma população jovem com taxa de fecundidade abaixo do nível de
reposição continuará a crescer, enquanto a taxa de mortalidade e os
níveis de migração permanecerem os mesmos.
Isso ocorre porque a mudança populacional não diz respeito apenas às
taxas de natalidade — a estrutura de uma população também tem impacto,
principalmente o número total de mulheres em idade fértil. Tudo isso
significa que, em países onde as taxas de fecundidade são altas, o
impacto total desse crescimento não é sentido até que as mulheres dessa
população atinjam a idade reprodutiva décadas depois.
Um estudo de 2014 descobriu que, mesmo no caso de uma grande tragédia
global, como uma pandemia mortal, uma guerra mundial catastrófica ou uma
política draconiana de filho único implementada em todos os países do
planeta — nenhuma delas desejável, claro — nossa população ainda
crescerá para até 10 bilhões de pessoas em 2100.
Mesmo um desastre em tal escala que deixe dois bilhões de pessoas
mortas em um período de cinco anos no meio do século ainda permitiria
que a população crescesse para 8,5 bilhões de pessoas nas próximas oito
décadas. Aconteça o que acontecer, concluem os autores, é provável que
haja muitas, muitas pessoas por aí até pelo menos o próximo século.
Com a humanidade prestes a se tornar ainda mais dominante nos próximos
anos, encontrar uma maneira de viver em sociedade e proteger o meio
ambiente pode ser o maior desafio que a nossa espécie enfrentou até
agora.
Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-62807711