O El Niño é um fenômeno climático que envolve um aquecimento incomum do
Oceano Pacífico. Em 2015 e no início de 2016, provocou efeitos
devastadores em diferentes regiões do mundo—- na Amazônia, houve redução
de chuvas e intensa seca em uma mata que normalmente é úmida, além de
favorecer a disseminação de fogos causados por humanos.
A área analisada pelos pesquisadores fica na região da cidade de
Santarém, no Pará, e tem 6,5 milhões de hectares — maior que os Estados
de Alagoas e Sergipe juntos. Essa "pequena" parte onde morreram bilhões
de árvores representa apenas 1,2% da Amazônia brasileira.
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Floresta afetada pela seca e fogos na região de Santarém durante o El Niño em 2015 — Foto: Erika Berenguer/Divulgação
Os pesquisadores também calcularam quanto carbono foi liberado na
atmosfera em consequência da morte dessas bilhões de árvores: 495
milhões de toneladas de CO² — valor maior que o liberado pela floresta
em um ano inteiro de desmatamento. E descobriram ainda que as árvores
continuaram a morrer e a liberar mais carbono na atmosfera por causa da
seca provocada pelo El Niño anos depois do fenômeno climático.
O estudo "Tracking the impacts of El Niño drought and fire in
human-modified Amazonian forests" (monitorando os impactos da seca e
incêndios do El Niño em florestas amazônicas com interferência humana)
foi publicado nesta segunda (19/7) no periódico científico PNAS
(Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of
America).
Como monitorar tantas árvores?
Incêndios florestais na Amazônia são feitos de fogos bem pequenos, com
chamas de 30 cm de altura que se movem muito devagar durante dias e dias
de queima — Foto: Erika Berenguer/Divulgação
Desde 2010, pesquisadores monitoram 21 parcelas de terra da Floresta
Amazônica espalhadas com até 100 km de distância umas das outras na
região do Baixo Tapajós.
Em 2015, observando a extrema seca causada pelo El Niño, resolveram
verificar como o fenômeno impactaria as plantas daquela região.
Eles já tinham mapeado 6.117 delas — "como num jogo de batalha naval",
explica a bióloga Erika Berenguer, das universidades de Oxford e
Lancaster e autora principal do estudo. Cada árvore era registrada em
quadrantes diferentes, com seu "X" e "Y" correspondente para facilitar
sua identificação.
Ao longo de três anos, entre outubro de 2015 e outubro de 2018, os
pesquisadores voltaram trimestralmente para cada uma daquelas 21
parcelas de terra e verificavam árvore por árvore para saber qual havia
sido seu destino.
As árvores morrem pela seca ou pelo fogo causado por humanos. E esse
fogo, por sua vez, pode ter diferentes origens. Uma delas, talvez a mais
conhecida, é o desmatamento. Depois de derrubadas as árvores, o fogo é
colocado para se livrar da floresta no chão. Outras origem são seu uso
para a limpeza de pasto na Amazônia ou para incorporar os nutrientes da
vegetação no solo — uma prática antiga que, no entanto, é afetada
negativamente pela seca que deixa a paisagem mais inflamável.
Esses fogos controlados podem escapar da área designada e entrar dentro
de áreas de floresta. Em um período de seca, isso é perigoso.
"A Amazônia é muito úmida. Normalmente esse fogo, se escapasse,
morreria, igual fogo em um pedaço de pano molhado", explica Berenguer.
Mas como, no período analisado por cientistas, o clima estava muito seco
— foram oito meses de seca — "o fogo, quando escapava, entrava na
floresta". "Ela estava como um pano seco parado no sol."
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Brasil pode fazer mapa de risco de incêndio para evitar maiores perdas em eventos de seca — Foto: Erika Berenguer/Divulgação
São fogos bem pequenos, com chamas de 30 cm de altura, e que se movem
muito devagar durante dias e dias de queima. "É lerdo e de baixa
intensidade. Mas quando cobre grandes áreas, fica difícil de apagar",
diz a pesquisadora. Além disso, é difícil de ver, porque as árvores são
altas. Sua fumaça, sim, é visível.
Então, pesquisadores voltavam para aquelas parcelas de mata para ver se
as árvores haviam morrido. É possível descobrir se uma árvore na
Amazônia morreu de acordo com diferentes fatores.
"Se
não tem folha, é um sinal que já está morta, já que a maioria das
árvores na Amazônia não perdem folhas em partes do ano", explica
Berenguer. Outra técnica: fazer um corte com um facão. "Você tira um
pedaço da casca para ver se ela está seca ou não."
Ela explica que, diferentemente de outros biomas, a Amazônia não
evoluiu com o fogo. "As árvores não estão preparadas para lidar com o
fogo, elas têm uma casca muito fina, sem o isolamento térmico que
árvores do cerrado têm. A casca de árvores da Amazônia são iguais a uma
folha de papel. Ela é superfina, sem proteção alguma", diz.
Depois de descobrirem quantas árvores e cipós tinham morrido em
excesso, os cientistas extrapolaram esse resultado para a área maior do
Baixo Tapajós, de 6,5 milhões de hectares. "A gente sabe o quanto de
floresta tem nessa área grande e o quanto em média a gente perdeu de
árvores nas parcelas. Se a gente perdeu em média tantas árvores nessas
parcelas todas, o quanto a gente perdeu na região toda?", explica
Berenguer.
O resultado foram os inacreditáveis 2,5 bilhões de árvores e cipós
perdidos naquela região. Para Berenguer, os números surpreenderam ao
mostrar a grandeza da mortalidade das árvores e a perda de carbono.
"Quando você está andando na floresta, você sabe que a situação não está
boa. Mas não sabíamos a magnitude disso."
Ver grande parte da floresta que monitorava havia anos de repente morta
foi "difícil emocionalmente", diz Berenguer. "Você cria ligações com a
floresta, como se fosse o quarteirão onde você mora, com a árvore que
você gosta."
Os pesquisadores também descobriram que os efeitos da seca do El Niño
duraram mais de três anos em florestas afetadas pela seca e dois anos e
meio em florestas afetadas tanto pela seca quanto pelo fogo, com árvores
ainda morrendo nesse período por conta do fenômeno climático.
O número menor para as florestas afetadas pela seca e pelo fogo parece,
de início, contraintuitivo. Mas "não é porque fogo causa menos dano",
explica Berenguer. "É porque já morreu tanta planta no início, que acaba
não tendo mais o que matar."
As árvores localizadas em florestas que já sofreram impacto são muito
mais vulneráveis ao próximo fogo, com maior chance de morrerem. A
floresta fica aberta, com maior entrada de luz e vento, o que a deixa
mais seca. "Se o fogo escapar em outros anos, é mais propício de se
sustentar ali. Acaba criando um looping de feedback negativo", diz
Berenguer.
Soluções
Autora principal do estudo, Erika Berenguer, monitora árvores em uma
floresta amazônica queimada durante o El Niño de 2015 — Foto: Marizilda
Cruppe/Rede Amazônia Sustentável
O El Niño acontece a cada dois a sete anos, em média, e há estudos que
apontam que as mudanças climáticas podem agravar o fenômeno. Seu efeito
na Amazônia, como se vê, é devastador. Mas há ações que podem ser feitas
para evitar que seja tão destrutivo.
Um ponto fundamental é a prevenção, diz Joice Ferreira, pesquisadora da
Embrapa Amazônia Oriental e da Rede Amazônia Sustentável e uma das
autoras do estudo. Por meio de satélites, cientistas já têm a capacidade
de prever secas. "E já sabemos que a seca é altamente relacionada com
queimadas. Uma vez que o fogo inicia é muito difícil controlar."
Quando o desmatamento em um ano é muito alto, é possível inferir,
também, que isso poderá se refletir no ano seguinte com uma
possibilidade maior de incêndios, já que regiões com áreas mais
desmatadas e mais secas são mais vulneráveis a queimadas.
Por isso, diz Ferreira, o Brasil tem "toda a condição de fazer um mapa
de risco de incêndio", como está sendo feito na região do Tapajós.
E há três pontos que podem ser endereçados. A seca, o fogo causado pela
limpeza de pasto ou por comunidades para incorporar os nutrientes da
vegetação ao solo e, claro, o fogo causado para "limpar" uma região
desmatada.
Para diminuir as consequências de um evento de seca como o El Niño, a
médio e longo prazo, é preciso investir na restauração florestal, diz
Ferreira, para reduzir a degradação das florestas. Dessa maneira, as
matas ficam menos secas e, assim, menos vulneráveis a secas.
Para controlar o fogo que pode escapar quando usado para limpar o pasto
ou para incorporar nutrientes ao solo, gestores podem fazer regras mais
rígidas, determinando certas condições para a realização dessas
queimadas.
Podem determinar, por exemplo, a quantos dias de diferença da chuva
esses fogos poderão ser feitos, impedir que sejam levados a cabo em
horários de maior calor ou que sejam postos no contravento e não a favor
do vento, entre outros.
O
governo pode também disseminar técnicas agrícolas que dependam menos do
fogo, diz Ferreira, e dar apoio para que populações tenham condições de
usar essas outras técnicas.
Por fim, é preciso combater o desmatamento — em sua maior parte,
ilegal. "É uma questão de comando e controle. As instituições têm que
ser mais fortalecidas, devem ser mais rigorosas nas multas, na
regularização ambiental das propriedades e realmente fazer esforço para
utilizar recursos que tem para responsabilizar quem faz as práticas
ilegais", diz Ferreira.
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