Total de visualizações de página

domingo, 26 de dezembro de 2010

Política mineira Andrelãndia





Andrelândia, onde os grupos políticos dos 'veados' e dos 'caranguejos' dão as cartas.
Plantão | Publicada em 14/08/2010 às 17h35m
Renato Grandelle
Comente




















ANDRELÂNDIA - Entre a Serra da Mantiqueira e a depressão do Rio Aiuruoca esconde-se Andrelândia, reduto mineiro inalcançável para os hábitos de metrópole ou as complexas siglas partidárias. Seus 12 mil habitantes não enxergam tucanos ou estrelas petistas no céu, menos ainda nas urnas. A fauna política local é regida por "caranguejos" e "veados", facções que se revezam no poder e figuram em folclóricas tramas de segregações, casamentos polêmicos e até ruas de calçamento inacabado.
Há algo de conspiratório no reino de cervídeos e crustáceos; ambos respondem em uníssono quando questionados sobre a divisão política da cidade. O discurso oficial é que o controverso bipartidarismo empacou Andrelândia, que só recentemente experimentou algum desenvolvimento.
Mas a rivalidade ainda está à espreita, e se traduz na pintura das casas (azuis e amarelas são de "caranguejos"; vermelhas e brancas pertencem a "veados"). Alguns carros ostentam adesivos da última eleição municipal ("caranguejo sempre" ou "veado de coração"). Os estabelecimentos comerciais aparecem em dupla. Cada facção tem seu posto de gasolina, sua loja de material de construção, sua farmácia, sua agência bancária.
Quando filiados vão à mesma festa, ficam em cantos diferentes; e quando jogam futebol, estão em times adversários. A boataria não poupa os neutros - o padre, dizem, é inclinado à "veadice", e do juiz eleitoral ninguém sabe.
Como todos frequentam o mesmo bar (cujo dono também é uma esfinge política), talvez só a cerveja seja suprapartidária.
O quiproquó político é quase tão antigo quanto Andrelândia. O município nasceu em 1866, sob a bênção do visconde Antônio Belfort de Arantes, que ergueu os dois prédios necessários para transformar qualquer terra em cidade no século XIX - a cadeia pública e a Casa de Câmara.
O pioneirismo lhe valeu duas décadas de domínio sobre os locais. Até que, em 1887, sete insurgentes lançaram candidatura de oposição ao Senado. Perderam. Quatro anos depois, o grupo, já fortalecido, disputou a prefeitura. Outra derrota. Nas eleições seguintes, porém, chegaram ao poder. Um correligionário do visconde, incrédulo com o safanão das urnas, desabafou em público:
"Andamos para trás! Parecemos caranguejos!" Foi o batizado involuntário de sua facção. Já os vitoriosos, de tanto pularem de alegria, pareciam os veados comuns por ali. E a comparação é lembrada até hoje.
Andrelândia vivia como em estado de permanente eleição. Todos os assuntos passavam pelas facções - inclusive os matrimoniais. "Caranguejo" e "veado" só foram dividir o altar da igreja em 1932. O feito inédito desenhava-se desde o ano anterior, quando Raul de Andrade Carvalho, filho de "crustáceos" pioneiros, mandou uma carta cheia de meandros à mãe de Carlina de Azevedo, filha de "veados" tradicionais. Assim começava o texto: "Deliberando em tomar estado e tendo verdadeira simpatia, e admiração por sua digna filha senhorita Carlininha vou por esta, de acordo com todos de minha família, solicitar o vosso apoio e consentimento..." Raul assinou a carta à futura sogra como "Vossa Excelência Servo Obstinado".
Raul agonizou com um mês de espera. Foi o tempo necessário para a mãe de Carlina escrever para seus 11 filhos, espalhados pelo país, perguntando se deveria autorizar o casório. A resposta veio positiva e acompanhada de uma assinatura bem mais informal - "sua grata amiga".
Raul e Carlina trocaram alianças e, assim, formaram o primeiro casal "veadejo" - híbrido político de "veado" com "caranguejo" - da cidade. Continuaram juntos por 75 anos, até a morte dele, aos 99. Da união vieram sete filhos, 26 netos e 36 bisnetos. Todos "veados".
O casamento não foi suficiente para tornar o "veadejo" uma espécie comum. As facções permaneciam compenetradas em seu embate político, intercalando quatro anos na oposição, quatro no poder. Obras deixadas por um partido eram demolidas pelo outro, antes mesmo de concluídas. O prédio da prefeitura era pintado a cada mandato de uma cor. O prefeito de um partido, ao asfaltar determinada rua, pulava a frente da casa de seus adversários.
Até a comemoração mudava de acordo com a legenda. À época da votação manual, o resultado das eleições era divulgado com músicas. Cada facção tinha seu repertório. Entre os sucessos históricos dos "caranguejos" estava. "A ponte do Rio Kwai". Já os "veados" apelavam para "Ilariê", da Xuxa.
- Mas nem precisava da música. Com o tempo, começamos a perceber quem ia ganhar antes mesmo da apuração dos votos - lembra a "carangueja" Maria Salete Andrade de Sá.
- Dá para ver pelo clima da cidade. E os votos da zona rural sempre vão para o nosso lado. É batata.
Tanta rivalidade entre as duas facções explica por que, no fim dos anos 60, ainda havia quem tomasse medidas extremas para ter relações com alguém do outro front. Caso de Maria Inês Meireles e José Maria Ribeiro.
Namorados há cinco anos, "carangueja" e "veado" sonhavam em casar-se. Mas seus pais, líderes políticos da cidade, eram inimigos mortais.
- Depois de muita insistência, os "veados" apoiaram o casamento - lembra Inês.
- Fugimos para Juiz de Fora, levando inclusive o padre, e depois seguimos para Volta Redonda, onde aconteceu a cerimônia. Foi tudo tão corrido que nem tiramos foto. Do meu lado da família, só um tio participou. Dizem que meu pai passou a noite na chuva, em Andrelândia, me procurando. Só com mais de um mês de casada fui encontrá-lo. Ele acabou se dando muito bem com meu marido. Mas continuou sem falar com o meu sogro, líder dos "veados", pelo resto da vida.
Filha de Maria Inês, Fernanda Meireles só descobriu a fuga de sua mãe aos 18 anos - uma tia contou por acaso, durante um capítulo da novela "O rei do gado", história sobre duas famílias rivais. Mas a nova geração andrelandense não precisa se preocupar com romances. Boa parte dos clãs mais tradicionais tem seus "veadejos". Fernanda, inclusive, tornou-se um deles.
- Não abrimos mão das nossas convicções. Voto num "caranguejo" ruim, mas não voto num "veado" - assegura.
- O chato é que, como sou casada com um deles, todos acham que mudei de lado. Dizem na minha frente que "caranguejo" não vale nada. Aí eu reajo, e todo mundo fica surpreso.
Pudera. Fernanda é casada com Leonardo Carvalho de Campos, um dos líderes dos "veados". E só os "cervídeos" sabem o quanto eles precisam de quadros eminentes. Na última década, vários baluartes do partido morreram. Os "caranguejos" celebram: estão no terceiro mandato seguido à frente de Andrelândia, algo que só havia acontecido uma vez na cidade.
Até no Legislativo os "veados" parecem correr risco de extinção. Dos nove vereadores, apenas dois são do grupo.
Vale o registro: desde o fim da ditadura, os "cervídeos" adotaram o que o resto do país conhece como PMDB. Já os "caranguejos" bandearam-se para o PSDB.
Os outros partidos adotam um dos animais conforme suas conveniências. "Veada" das mais ilustres e ex-vereadora por dois mandatos, Dinora Vilela Salgado está inquieta com os rumos de sua facção. Atribui as seguidas derrotas à crença popular de que, mudando o prefeito, os beneficiados do Bolsa Família teriam a renda extra cassada. Culpa as pesquisas de opinião, uma novidade em Andrelândia, que inclinariam os eleitores a votar em quem lidera o pleito. E divide-se entre querer ou não uma candidatura de seu filho, Felipe, presidente do partido dos "veados":
- Quero que o Felipe saia da política... Mas na próxima eleição ele vai mudar tudo, né, Felipe?
- Vamos ver... - responde ele.
- Vamos ver, nada! Vai sim - ela diz.
O orgulho partidário de Dinora está longe de ser exceção.
- Sou muito antiga na "caranguejice" - gaba-se uma aposentada, que se identificou apenas como Decelis.
- Tenho amigo que é "veado" de o chifre ir até lá em cima, mas nenhum na minha família. Se até hoje eles não viraram meus parentes, por que isso aconteceria agora? Já estou velha, deixa isso para lá.
Embora a sanha eleitoral tenha diminuído com o passar das décadas, as facções ainda evitam contato quando a disputa pela prefeitura se aproxima. Segundo os próprios andrelandenses, poucos são os militantes que conseguem
manter um comportamento razoável.
É o caso do "caranguejo" octogenário Gentil Chaves Campos, considerado uma referência histórica da cidade até mesmo pelos "cervídeos". Gentil foi cotado, mais de uma vez, para capitanear uma chapa suprapartidária, que unisse a fauna municipal. Ganhou o apoio de alguns "veados", mas esbarrou em obstáculo maior.
- Minha mulher não quis que eu entrasse na política - explica.
- Ela disse que eu criaria inimizades. Acabei não sendo candidato. Mas, ainda hoje, não tenho a mentalidade de achar que a outra facção é uma porcaria. Na eleição, minha casa é uma das poucas que não penduram faixa ou colam adesivo. Por isso me dou bem com os dois lados.
Os neutros de verdade são poucos. Um deles é o juiz Ricardo Domingos de Andrade, incumbido, há seis anos, de impedir a chacrinha na corrida eleitoral. A esta função soma-se outra ainda mais espinhosa: convencer os dois lados de que a balança da Justiça não pende para um deles.
Os cuidados alcançam dimensões só imagináveis em uma cidade partida como Andrelândia. Ricardo mora em uma casa pintada de salmão. Adotar outra cor nem passa por sua cabeça.
- Se mudasse para azul ou vermelho, que são associadas às facções, seria mal interpretado - pondera.
- Existe sempre uma especulação se o juiz é "caranguejo" ou "veado". Proibi até os advogados de conversarem sobre política no fórum.
O duelo político dificulta o julgamento de processos eleitorais. Ricardo aprendeu que o depoimento de testemunhas pode não ajudar tanto assim o seu trabalho - afinal, toda a cidade parece estar comprometida até o pescoço com uma das facções.
Outro que evita qualquer afinidade com a política andrelandense é Gilvan Barquette, proprietário do Bar do Gilvan, o mais popular da cidade. Enquanto outros vendedores de cerveja, cachaça e afins digladiam-se em nome de suas facções preferidas, Gilvan adota uma neutralidade diplomática. Só sai de cima do muro para declarar amor eterno ao Botafogo - o que não chega a ser polêmico, considerando que o time carioca é o mais popular da região.
- Meu bar é um dos poucos espaços em que "veados" e "caranguejos" socializam - orgulha-se.
- E isso acontece justamente por eu não ter preferências políticas. Se dissesse em quem voto, só receberia clientes de um partido.
Numa rápida enquete na Escola Estadual Visconde de Arantes, a mais tradicional da cidade, em que participaram somente jovens de até 15 anos, oito declararam-se "veados", dois são "caranguejos" e apenas três não têm legenda. Quando forem um pouco mais velhos, alguns deles já terão papel ativo na militância.
Ao menos foi assim com Leandro Fonseca, de 25 anos, "caranguejo" desde sempre.
- Você já nasce sabendo a sua facção - garante.
- Parece que menos jovens ligam para isso hoje em dia, principalmente longe das eleições, mas tão cedo não surge um terceiro partido.
É piada corrente na cidade: "Caranguejos e veados estão acabando. Só faltam uns cem ou 200 anos."
O prefeito Samuel Isac Fonseca, pai de Leandro, tira zeros dessa previsão: em dez ou 20 anos, segundo ele, os partidos só existirão em livros de História.
Décimo quarto alcaide andrelandense, Samuel foi eleito com 4.624 votos, ou 61,2% dos válidos. A eleição do ex-bancário "caranguejo" provocou uma migração dos "veados" para outro barco.
Para o prefeito, os conflitos entre "cervídeos" e "crustáceos" remetem a um passado "que não merece recordação". A tradição secular estaria com os dias contados porque os jovens engrossam um batalhão, hoje equivalente a 30% do eleitorado, que decide seu voto baseando-se nos planos de governo, e não em facções.
O discurso conciliatório e os cálculos políticos merecem só uma ressalva:
- As grandes obras realizadas na cidade, como o calçamento e a urbanização, vieram dos "caranguejos". Esta é a fonte dos melhores administradores e a que tem o projeto mais voltado ao social.
Talvez a observação mais ponderada seja de Andrei e Andressa Teixeira de Campos, respectivamente de 5 e 8 anos, filhos de "veadejos". Pressionados pelos tios "veados" a declararem suas preferências políticas, responderam de primeira:
- Eu sou zebra.
- E eu sou elefante.
Pode ser o início de uma nova era em Andrelândia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário