E a importância desse período já havia sido anunciada, acredite, antes
da pandemia de coronavírus e de toda a crise política que se vê em
vários cantos do mundo.
Quem diz isso são alguns filósofos e pesquisadores que têm se unido em
torno da ideia de que vivemos o período da "dobradiça da história".
O termo vem do livro "On what matters" ("Sobre o que importa", em tradução livre) do filósofo britânico Derek Parfit.
"Dadas
as descobertas científicas e tecnológicas dos últimos dois séculos, o
mundo nunca se transformou tão rapidamente. Pode ser que logo tenhamos
maiores poderes para transformar não apenas nosso entorno, mas a nós
mesmos e a nossos sucessores", escreveu o pensador, em 2011.
"Vivemos o momento 'dobradiça' da história."
A essa ideia se somou, no ano passado, uma publicação do filósofo escocês Will MacAskill, da Universidade de Oxford, defendendo o chamado altruísmo eficaz, um movimento com o propósito de aplicar a razão e as evidências em prol do bem comum.
Sua publicação em um fórum gerou mais de 100 comentários de outros
especialistas, sem contar os podcasts e outros artigos repercutindo-a.
Como escreveu Kelsey Piper, editora no site Vox, o debate sobre este
momento decisivo na história é mais do que uma discussão filosófica
abstrata: trata-se de identificar o que nossa sociedade deve priorizar
para garantir o futuro da nossa espécie a longo prazo.
Para entender por que, vamos começar examinando os argumentos que sustentam a ideia de que o nosso momento é assim crucial.
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Acredite: o momento 'dobradiça' já havia sido anunciado antes da pandemia do coronavírus — Foto: Getty Images via BBC
Somos os mais influentes da história?
Nos últimos anos, cresceu a sustentação à ideia de que vivemos em um período de alto e incomum risco de autoaniquilação.
Como
afirmou o astrônomo britânico Martin Rees: "Nossa Terra existe há 45
milhões de anos, mas este século é especial. É a primeira vez que uma
espécie, a nossa, tem o futuro do planeta em suas mãos."
Pela primeira vez, temos nas mãos ações que podem destruir de forma
irreversível a biosfera, ou também tecnologias cujo uso equivocado podem
causar um revés catastrófico à civilização, acrescenta Rees, cofundador
do Centro para o Estudo de Riscos Existenciais da Universidade de
Cambridge.
Esses poderes destrutivos estão além de nossa sabedoria, de acordo com o filósofo autraliano Toby Ord, também de Oxford.
Ord escreveu um livro chamado "The Precipice" ("O Precipício") como uma alegoria de onde estamos: a um passo de um desastre.
Para ele, as chances de o mundo terminar este século são muito altas.
Em sua opinião, o que torna nosso tempo particularmente decisivo é que
criamos ameaças que nossos ancestrais nunca tiveram que enfrentar, como
guerras nucleares e biológicas. E, além disso, não estamos fazendo o
suficiente para conter essas ameaças.
A Convenção das Nações Unidas de Armas Biológicas, um compromisso
global para conter o desenvolvimento de armas biológicas como um super
coronavírus, tem um orçamento menor do que uma lanchonete corriqueira da
rede McDonald's.
Superinteligência
A ideia de que estamos em um ponto de inflexão perigoso também dá
munição ao segundo argumento daqueles que apoiam a hipótese da
dobradiça.
De acordo com diversos pesquisadores renomados, existe a possibilidade
de que no século 21 a inteligência artificial logo se transforme em
superinteligência. E mais: a forma como lidamos com essa transição pode
determinar todo o futuro da civilização.
Por si só, uma inteligência todo-poderosa pode marcar o destino da
humanidade com base nos objetivos e necessidades que possui.
Assim, o
futuro da civilização poderia ser moldado pelo primeiro a controlar a
inteligência artificial. E isso pode fazer com que uma única força
busque o bem de todos, ou que o poder seja usado de forma repressora.
Não há unanimidade sobre os efeitos a longo prazo da inteligência artificial (IA).
Mas mesmo entre aqueles que consideram pequenas as chances de um
cenário catastrófico com IA, muitos reconhecem o enorme potencial de sua
influência pode tornar as próximas décadas mais importantes do que
qualquer outra da história da humanidade.
Por isso, muitos pesquisadores e organizações têm se dedicado a estudar
a ética e a segurança envolvidas na inteligência artificial.
Clima
O astrônomo Martin Rees alerta que neste século 21 temos o futuro do planeta em nossas mãos — Foto: Getty Images via BBC Luke Kemp, professor da Universidade de Cambridge,
aponta que as mudanças climáticas causadas pela ação humana e pela
degradação ambiental neste século podem ter implicações significativas
no futuro.
"A transformação mais fundamental até agora na história humana foi a chegada do Holoceno, que permitiu a revolução agrícola."
Kemp aponta que as sociedades humanas parecem ter se adaptado para
viver em um subconjunto surpreendentemente restrito de climas
disponíveis na Terra — com temperaturas médias anuais em torno de 13
graus.
"Este é o século em que faremos um experimento geológico perigoso e sem
precedentes e talvez nos empurremos para fora do nicho climático ou,
pelo contrário, nos afastemos do abismo."
Também poderia ser argumentado que a relativa pouca idade da civilização nos torna particularmente influentes.
Temos apenas cerca de 10 mil anos de história humana, e pode-se dizer
que as primeiras gerações têm a capacidade de mobilizar mudanças e
valores que persistirão nas gerações futuras.
Podemos pensar na civilização de hoje como uma criança que carregará cicatrizes e traços formativos pelo resto da vida.
Mas nossa relativa juventude também poderia ser usada para argumentar o
oposto, o que leva a uma pergunta óbvia: os primeiros humanos não
viveram na época mais influente?
Afinal, bastavam alguns erros no Paleoceno ou o fim da revolução agrícola e nossa civilização nunca teria existido.
No entanto, MacAskill diz que, embora muitos momentos da história
tenham sido cruciais, isso não significa necessariamente que tenham sido
influentes.
Os caçadores-coletores, por exemplo, não estavam em posição de
participar de um momento decisivo porque não tinham o conhecimento para
saber que podiam mudar o futuro ou os recursos para seguir um curso
diferente.
Ser influente, na definição de MacAskill, envolve a consciência e a possibilidade de seguir um caminho ou outro.
Por que isso importa
A definição de influência nos leva aos motivos pelos quais MacAskill e
outros estão tão interessados neste estudo dos nossos tempos.
Encontrar respostas indicará a quantidade de recursos e tempo que a
civilização deve dedicar aos problemas de curto prazo versus problemas
de longo prazo.
Fazendo uma comparação a nível pessoal, se você acreditar que amanhã
será o dia mais influente de sua vida — por exemplo, a data de um exame
muito importante ou do seu casamento —, então você colocará muito tempo e
esforço nisso imediatamente.
Mas se você acha que o dia mais influente de sua vida está a décadas de
distância, ou você não sabe que dia será, você se concentrará em outras
prioridades primeiro.
Onde investir
MacAskill é um dos fundadores do altruísmo eficaz e passou sua carreira
buscando maneiras de alcançar o bem maior a longo prazo.
Se esta filosofia pressupõe que estamos agora em um ponto de inflexão, é
preciso gastar bastante tempo e recursos para reduzir urgentemente os
riscos existenciais de longo prazo.
Se, ao contrário, as pessoas acreditam que o momento dobradiça
aconteceu há séculos, então elas se empenharão em outros problemas
imediatos, como investir dinheiro em seus descendentes.
Alguns podem questionar os benefícios a longo prazo de se investir
dinheiro, uma vez que vários colapsos sociais na história destruíram
poupanças e fundos. Outros provavelmente sugerirão que o dinheiro deve
ser investido na erradicação dos grandes problemas atuais, como a
pobreza.
O principal objetivo dos altruístas eficazes é determinar o verdadeiro
ponto de inflexão na história a fim de maximizar o bem-estar da espécie e
garantir o florescimento futuro.
Outras visões
Um passo em falso na revolução agrícola e o futuro de nossa civilização
teria sido muito diferente — Foto: Getty Images via BBC O argumento mais simples contra a hipótese do momento dobradiça é uma questão de probabilidade.
Se conseguirmos sobreviver a este século e atingir a média de vida de
um mamífero, estaremos falando de uma humanidade que durará cerca de um
milhão de anos. Um período em que poderíamos potencialmente nos expandir
para outras estrelas e nos estabelecer em outros planetas.
Além disso, ainda há, em teoria, um grande número de pessoas que
nascerão no futuro. Mesmo se olharmos apenas 50 mil anos à frente, a
escala das gerações futuras pode ser enorme.
Dado o número astronômico de pessoas que ainda deverão existir, diz
MacAskill, seria surpreendente se nossa pequena fração de população
atual fosse justamente a mais influente.
É provável que essas pessoas do futuro, com sorte, venham a ser também
mais moral e cientificamente iluminadas do que nós. Assim, elas poderiam
fazer ainda mais para influenciar o futuro de maneiras que ainda não
conseguimos conceber.
Aqueles que acreditam que estamos vivendo um momento dobradiça também
poderiam estar desenvolvendo raciocínios incompletos e falhos.
Talvez aspectos cognitivos estejam fazendo com que os eventos visíveis e
contemporâneos pareçam mais importantes do que realmente são.
Vivendo na década de 1980, por exemplo, poderia se pensar que o maior risco para a humanidade seria a nanotecnologia.
Além disso, existe a possibilidade do viés de confirmação. Em outras
palavras, se você realmente acha que os riscos existenciais merecem mais
atenção, é provável que desenvolva inconscientemente os argumentos que
sustentam essa conclusão.
Por essas e outras razões, MacAskill acha que provavelmente não estamos vivendo na época mais influente.
Pode haver argumentos convincentes para pensar que estamos vivendo em
uma época especialmente complicada em comparação com outros períodos,
mas dado o futuro potencialmente longo que aguarda nossa civilização,
esse tempo provavelmente ainda está por vir.
Vantagens se o momento dobradiça não existir
Embora possa parecer decepcionante concluir que não somos as pessoas
mais importantes de todos os tempos, na verdade, isso pode ser positivo.
Se você acredita que existe uma "época de perigos", então o próximo
século será especialmente arriscado para se viver, possivelmente
exigindo sacrifícios significativos para garantir a sobrevivência da
nossa espécie. E como Kemp aponta, a história ensina que quando há
muitos medo de que uma utopia futura esteja em jogo, coisas
desagradáveis são feitas em nome dela.
"Os
estados têm uma longa história de medidas draconianas para responder às
ameaças percebidas, e quanto maiores as ameaças, mais severo é o uso
desse poder emergencial", diz Kemp.
Por exemplo, alguns pesquisadores que buscam formas de prevenir
cenários desastrosos decorrentes da inteligência artificial acreditam
que possamos precisar de um sistema de vigilância global onipresente que
monitore cada pessoa viva o tempo todo.
Mas se a vida em um momento decisivo exige sacrifícios, isso não
significa que uma época que não tenha essa característica possa ser
vivida com total desleixo.
Neste século, podemos infligir danos significativos a nós mesmos, e não
necessariamente catastróficos ou aniquiladores de espécies.
No século passado, descobrimos inúmeras maneiras de deixar heranças
malignas para nossos descendentes, desde o carbono na atmosfera até o
plástico no oceano e o lixo nuclear no subsolo.
Portanto, embora não saibamos se o nosso tempo será o mais influente ou
não, podemos dizer com mais certeza que temos um poder crescente para
moldar a vida e o bem-estar de bilhões de pessoas que viverão amanhã,
para melhor ou para pior.
Caberá aos historiadores do futuro julgar se usamos bem essa influência.
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